domingo, abril 25, 2010

Arte do despojo, arte do despejo

Mais do que as coisas, são os pensamentos que precisam ser renovados. Hoje vimos nossas paredes, cansadamente, do mesmo modo: estávamos apertados, sentíamos que o espaço à nossa volta estava reduzido. Uma vez mais tropeçamos em uma das muitas caixas que se amontoavam, umas sobre as outras, por quase todo o chão. Mal víamos o caminho por onde passar. Mas o tropeço de hoje não incomodou somente nossos pés. Vimos, desde o chão onde pisávamos, que havia muita coisa guardada, há muito sem ser usada. Entre um lampejo e outro de memória... poucas lembranças de nossas posses. Era hora de mudar. Abrimos as janelas. Muita luz no quartinho nos fundos, no quartinho do esquecimento. Mas mesmo com toda aquela luz, que há tempos não entrava além das frestas das janelas, não conseguimos nos lembrar de tudo que tínhamos, de tudo que havíamos amontoado ao longo dos anos. Era preciso abrir as caixas. Era preciso enfrentar o pó por entre os dedos, por entre nossas narinas... Iniciamos nossa luta de recordação. Algumas caixas não nos trouxeram surpresas. Estavam mais à mostra do que outras e sabíamos, com certa precisão, o que elas continham. Mas ao longo de nosso trajeto, fomos chegando a outras caixas mais escondidas. Quanta surpresa! Quantas coisas que mal nos recordávamos de possuir. Quantas coisas outrora úteis que, na época, dizíamos que seriam úteis para o futuro. Quantas coisas inúteis! Quantas previsões desfeitas! Fomos descobrindo que guardar era também se esquecer. Uma vez mais fomos tentados pelo demônio do arquivamento: “__ Isto vai servir pra gente.”, “__ A gente pode precisar disto algum dia.” Como era difícil decidir entre conservar algumas coisas e guardar somente a lembrança de tantas outras, torná-las lixo. O sol chegou ao meio dia. A pino, a claridade agora media forças com as sombras do interior. Estávamos já cansados, mas a meta era fazer tudo de uma só vez. Continuamos sentados no chão, seguimos abrindo as últimas caixas velhas, amassadas e empoeiradas, mas, sobretudo, as últimas caixas. Não só sentíamos o cheiro do pó, agora sentíamos seu gosto. À última caixa, já sentíamos os louros da vitória se aproximarem de nossas cabeças. Mas sabíamos que tudo o que iríamos ganhar estava atrelado a quantas coisas estávamos dispostos a perder. Fomos descobrindo que jogar fora era também se lembrar. Caixa sobre caixa, a poeira escondida nos quatros cantos, tudo foi amontoado para fora das paredes. Víamos, agora, as luzes da tarde fazendo as pazes com as sombras do interior. Essa mistura era sinal de que a noite logo chegaria. Algumas caixas voltaram para dentro. Outras foram colocadas para fora de nossos portões. Pressentíamos que, até a passagem do caminhão de lixo, muitas coisas poderiam ser descobertas ali como úteis, a resposta à precisão de muitas pessoas. Mas agora nos dávamos o luxo de dizer: “__ São lixo!” Exaustos, em meio a um tímido contentamento, fechamos de novo as janelas, mesmo antes das sombras da noite chegarem. Voltamos a pendurar a chave do quartinho atrás da porta. Ele estava bem mais espaçoso agora. Havíamos jogado muitas coisas fora. As paredes se viam de outra maneira. Na realidade podíamos ver bem mais as paredes. Mas em contraste a esta sensação de vazio, estava a sensação de povoamento em nossas cabeças: reavivamos muitas lembranças jogando algumas coisas fora. Mais do que velhas coisas, eram os pensamentos que precisavam ser renovados.

Cada guerra

Cada guerra consigo enterra uma lógica de funcionamento Com a arma mais potente vem a verdade mais forte Cada morte é uma moeda com dois lad...