terça-feira, outubro 27, 2015

domingo, junho 21, 2015

Aprendiz de Phauno

Fauns lie so well
as if there were no heaven nor hell
and to master what they say
you just believe, even if you don't pray

Até mesmo os faunos devem aprender quem são.

Entre tantas habilidades distintivas, há uma que lhes é muito cara, pois é a mas difícil de ser aprendida: mentir. Tanto é assim que o aprendizado deles começa com ela, e ao mesmo tempo enquanto aprendem as outras, vão se aperfeiçoando, até terminarem seu treinamento com o teste final: a mentira. Assim é que eles se tornam quem são.

O primeiro contato pareceu surpreendente. O brilho dos olhos verdes, cintilando sobre a barba ruiva, compunham uma chancela convidativa, quase irresistível, não fosse o sorriso entreaberto, lançando a última isca à presa desavisada, embora pretensiosa.

Desde então, as conversas se sucederam, apesar do estranhamento de uma mentira branda, bobinha, quase irrelevante, não fosse o tempo sopesá-la na conversação. Uma mentira branda parece ser inofensiva, diante de uma sucessão de charmes e risos ao longo de trocas gentis e acaloradas de desejos mútuos.

A promessa.

O encontro marcado.

A consumação.

E após o ato, o fato vai se manifestando entre uma distância tríplice: tempo, espaço e imaginação. É neste momento que os faunos sucumbem. É nesta hora que os encantos do charme deixam de inebriar a presa e a branda mentira, do primeiro contato, vai ganhando outras dimensões. A única chance de escapar é se a presa for capaz de perceber que até mesmo o próprio fauno, por mentir tão bem, acredita em sua própria mentira.

Aqui se dá a perda do nexo.

A presa passa a brincar com o predador. E quando ela se cansa, nem mesmo diz adeus. É melhor não despedir-se dos faunos. Isto lhes faria acreditar que representam algo e lhes daria forças para investir numa outra promessa, num outro encontro. Uma mentira a mais.

Deixar partir.

Esquecer, ao menos, do ato de estabelecer contato. Esquecer no tempo e no espaço. Embora nunca na imaginação. É somente esta memória que mantém os faunos como criaturas que são; bem como alerta a presa na lembrança da enganação.

A repetição pode ser eterna. Mas é sempre uma escolha.

Mentira após mentira. Sina dos faunos.

Ao teste final, o aprendiz ganha dois espelhos. Como usá-los é o que terminará por definir quem os faunos são, sobretudo, a si mesmos.


The Goddess, smiling,
gave him two mirrors
in one of them, he could see the present
in the other, he could see the absence

sábado, junho 20, 2015

Sentinela



Guardo tua passagem
velo o caminho de teus pés

Afugento o mal que te espreita
protejo as veredas de teus desejos

Mas, se não vens,
cochilo esta demora

Chega de mansinho!

Natureza sem tempo



Repousa no fastio da tarde
no calor restante da lareira

Calma, que o mar espera
há comida ainda ao redor da mesa

E no desapego dos sonhos
na indiferença dos pesadelos

Segue a faina inveterada
sob o domínio da natureza

Ser sem tempo
Ser só no espaço

Presença fugidia



Ao clarão da hora incerta
respiro tua ausência

Ao clarão da hora incerta
espero tua passagem

À escuridão desta certeza
desfruto uma solidão doce-amarga

À escuridão desta certeza
deixo-te um lugar no meu jardim

Não demores!
O banco vazio
é também minha presença fugidia

Reuso da natureza

 


Areia rolada no rio
areia ralada da pedra
areia coada no vento

Sílica polida
sílica prensada
sílica tratada

Verso inverso
abuso e destreza
reuso da natureza

sexta-feira, junho 12, 2015

Ao fim certo



Pisarei forte a terra
seguirei meu caminho
rumo ao fim certo
viverei o que me resta
o que me toca
que me impele
me angustia 
revitaliza

domingo, junho 07, 2015

Tuas mentiras

Uma costela por tua mentira
e todos meus ossos
por todas tuas mentiras outras
e o que posso te dar
em compensação
por tuas histórias falsas?
por tuas meias palavras?
por teus muitos perfis?

Restam-me estas imagens
agarradas à lembrança
todas as vezes
em que falho esquecer-te

Talvez me cure
um comprimido de morfina
e uma garrafa de cerveja
e depois de um encontro inesperado
de lágrimas forçadas
me vire de lado
como se não estivesses mais aqui

Paraíso, 04-06-15

Cura e entretém

Um saber que em se matar procura
bestia, infâmia que calcula
torna à porta de tua vida
repassa os teus dias mais amargos
e se ainda a evidência te falta
guarda com assombro tua cegueira
pois se outrora houvesses morrido
que te pareceria viver sem ter sofrido?

A sofreguidão, que arrastam nossos dias,
é um peso que a natureza interpõe
neste meio, entre o nada que somos
e o nada que sabemos
uns calculam a felicidade
outros, barbaridade!,
se entretêm entre aquém e além.

Só estes vivem!

Mas enfim, se ainda te matares
carregue mais uma incompreensão:
em todos os dias que tiveste
morto já estavas no coração.

A dor não é um passatempo,
mas com o tempo,
ela passa!

Cuida e entretém!

Paraíso, 04-06-15

De teu amável traído

Reservo à minha posse
o remédio amargo

Dou-te o veneno doce
como dissolução de algum embargo

Espreito teu olhar
vicejo a copa transbordante

Deste mundo ou ultramar
aguardo que a entornes galante

E na agitação do tóxico
ao ver-te esvair em suspiros

Gotejaria o antitóxico
nas águas do mar traído

Paraíso, 01-06-15

Sinhá Rosária

Sinhá Rosária,
a bênça do seu sorriso!

Meu pedido humilde
de uma canção de alegria
de um encanto
pra festá São Benedito!

Um batuque
na piscada dos seus olhos,
Sinhá!

A sua bênça!

Paraíso, 31-05-15

Mentira das alturas

 


As alturas mentem
quanto mais olhamos pra cima

Pois cada teto que levantamos
encobre um céu que não se domina

Promessa de visita



À porta
para os passantes

À porta 
para os convidados

À porta
para o que promete
surpreender com uma visita

A porta
à espera
o enfeite é uma distração
que espero que te atraia

Brotação



Na luta por um espaço
o frágil vira aço
se a vida é brotação

Da metafísica à matemática,
isto é só

Outro olhar



Fogo de cor
labaredas de vida

Rebento de ciclo
dádiva de contemplação

E, aos olhos desatentos,
o lamento de te chamar 
somente 
flor

À custa de um serviço



Laboriosa e entretida
inveterada na faina da vida

Por entre espinhos e flores
por entre sabores e odores

Não para
não cala
vive à custa de um serviço
e o nada não a subtrai

Alta e profunda



Raízes sobreviventes
subviventes
silenciosas

Raízes vitais
incondicionais
vigorosas

Raízes de um desejo
de um tempo que brota
de um chão que se abre

O vigor das alturas
se mede na fundura
que vences na solidão fértil da terra

Na feitura da oferta



Uma promessa
se quebra
se o desejo
mente
na feitura
do dito

Um promessa
impera
se resiste
a força
da oferta
feita

Uma promessa
dura
se a cura
é maior
que o apego
à ferida

Uma promessa 
é vida

Quase encruzilhada

 



Quase encontrada
estrada quase acabada

Quase terminada
vontade quase realizada

Quase caminhada
promessa quase quebrantada

Quase repensada
doutrina quase encruzilhada

quinta-feira, junho 04, 2015

A beira



Chão de saída ou entrada
num tempo em que o tempo 
supria o nada
no telhado
na parede
no corrimão
na sacada

Ao forno 
o contorno
adorno 
à beirada

A tua chegada



Bailo esta dança
no gingado da reparação
como quem balança
o amor pela mão

Não te preocupes
ainda terei ânimo
pra dançar a tua chegada

Cão empedernido



Um latido de rocha
Uma cauda de pedra

Um cão somente
um sinal de lembrança
à memória do que foi original

Imóvel
compacto
enfático
desde nosso último passeio

Raio tímido



Um raio tímido 
seu caminho acha

Por entre as coisas
aqui ou na praça

E, feitiço derradeiro,
aquece-te a espera

Coisa breve

 


Um caminho
ao ninho
uma jornada
ao nada

Uma espera
à era

Existir é pros mortais

À tua porta



Fui bater à tua porta
mas tu estavas ausente

A julgar pela força da tramela 
tu pareces que não vais voltar

Fibra lamentosa



A madeira chora
a madeira vibra
a madeira cobra
a envergadura da fibra

Lágrimas de humo
lágrimas sem rumo

Dádivas de perfume e incenso 
a cada broto penso 

Às cascas,
às fibras
resta o premio do abraço

O entretém da fala



Sigo teus passos
nos labirintos de tuas palavras

Uma escuta, 
uma espera

E uma força 
de compreender-te

Ilusão deste lado de fora
que entretém-nos pelos mistérios de dentro

De gêneses e ausências



Ainda que me faltem os versos
ainda que me faltem as rimas
ainda que me sobrem estercos
ainda que me sobrem aspirinas

Ainda assim respirarei
ainda assim irei adiante
ainda assim abrirei os olhos
ainda assim sofrerei este poema

Mensageiro



Chamo-te ao longe
porque te quero perto

Grito teu nome ao vento
até que me olhes nos olhos

Trago-te a mensagem
a cada trago que fumas

Esperam por ti
lá na esquina da vila

Esqueça o que fazes
o tempo pranteia

Folhas ressequidas



Pela parede do teatro
pelas ranhuras do quarto

Pela fresta da porta
pelas beiradas da janela

Pelo canto do salão
pelos fios do violão

Pelo meio do corredor
pelos seixos do jardim

Espalharei tuas folhas ressequidas
como espalhastes as dores pra mim

Ao céu



Alçarei os braços
às longuras do céu

Não importa a distância
contenta-me a ação

E verei meus dias mais amenos
abraçando-me às noites 

O céu será o limite
até arrancar-me do chão

Entre sombras



Mar de luzes 
revolto nas sombras

Veleiro iniciado
na arte das ondas

Sonhar é navegação
nas águas turvas da imaginação

sexta-feira, maio 29, 2015

Flor de pedra



Flores nos arredores
nos jardins 
nos corredores

Flores nas janelas
nos gazebos 
nas gamelas

Flores nos canteiros
nos alpendres
nos terreiros

Flores dos senhores
flores às senhoras
flores de amores,
imortalizadas!
Flores de pedra

segunda-feira, maio 25, 2015

No calor do som



Acende a fogueira do som
bota fogo no tambor

Afina a fibra da nota
aquece a canção de louvor

Canta o fogo na roda
tamboreja os pés da coreira

Enfeite banal

 


Saudade da água salgada
outrora pressão e acalento

Hoje enfeite banal
na parede do quintal

A caixa do segredo



Um segredo se tranca por medo
um segredo se esconde bem longe

Um segredo se guarda trancado
um segredo não se fala por nada

Mas tudo que tem segredo
só um segredo se sabe

Já não é mais segredo
para quem tem a chave

Presente para o mar



Quando o mar surgiu na terra
fez-se não pouco alvoroço

A montanha estremeceu
rolou rocha igual caroço

A árvore sacudiu
mandou folhas pelo ar

O vento sibilou forte
levando-as para o mar

Neste pedaço aqui de Minas
onde as águas vêm do céu

Meu presente é esta rima
no meu mar de mataréu

Solidão de caçador



À tarde o peixe sobra
sobe à tona a passear

A fome ronda o tempo todo
rondo à margem a te esperar

E se não vens, desgraça pouca
vai-se a garça sem paciência e rouca

Eu, pelo contrário, ainda fico
olhos abertos, aberto bico

Blocos

 


Um bloco loco
outro bloco foco

Um bloco invoco
outro bloco provoco

Um bloco retoco
outro bloco desloco

E na sucessão do oco
bloco a bloco é pouco

Quero mais
blocos loucos

A sedução das fibras



Por um momento de tato
por um segundo de visão

Capturado pelas tuas sobras
inconformado com as tuas dobras

Poderia seguir meu caminho
mas me detive na observação

Do retorno aos teus contornos
sigo imaginando adornos

E meu pensamento vagueia só
contigo na imaginação

Azulejo



Cisco e rabisco
trova e prova
arabesco e refresco
lampejo e azulejo

Na parede a rede
no muro o enduro
da escada à fachada
do pátio ao átrio

O azulejo que vejo
é um recorte de sorte
um aceno ameno
e uma arte à parte

Pés no chão



Frágil, é fato
mas não há escolha
há marcas no caminho,
no mapa do caminhante
ferida e bolha
e um destino que se alcança

Tramas das linhas



Nas curvas do pano
nas voltas do tecido
no eixo da agulha
no molejo da linha

Uma costura,
um remendo
uma obra
um rebento

De janelas e amores



Trouxe de presente
uma janela que não se tranca
um beijo que não termina 
uma vontade que não se desfaz
e um nome que é só teu

Abraço



Por um laço mais estreito
por um peito mais aberto
de um jeito insuspeito
de um modo mais direto

Eu abraço
o braço abraça
abraça o braço
a gente se abraça

Às sombras



Nem o vento ou a densidade do mar
nem o peso da montanha ou a lonjura da nuvem

Entre mundos
entre rumos
entre sonhos
entre segredos

Presente ou ausente
sem tom de reprova
acalentando a superfície dormente
adereçando-lhe a cova

O grito



Extenuado
desesperante
atormentado
beligerante

À moda
à turba
à roda
à curva

De dor
de prazer
de horror
de saber

Mansão dos mortos



Sozinho na sombra do abrigo
Protegido no esquecimento da solidão
Amparado pelo conforto do silêncio
Residente no aconchego da mansão

Não há portas ou janelas
à complacente visitação

Regularidade



Regularidade
remendaridade
reformaridade

Repetição da régua, da norma
Repetição do remendo, do intento
Repetição da reforma, da forma

Repetição
Regulação
Repeticidade
Regularidade

domingo, maio 24, 2015

Love fever

You won't kiss my lips again
now I recovered from a disaster
there's no drop of this rain
pulling my heart further and faster

I'm saved from your tricks
I'm cured of your spelling
you're a wall with no bricks
you're a past without smelling

Paraíso, 16-05-15

I'm not the same

I named a wind after your name
Wishing you fly away forever
Even I know you can fly back

In a way to curse me and blame
You won't find someone worse or better
You will be up to check

I'm not the same

Paraíso, 16-05-15

segunda-feira, abril 20, 2015

sábado, abril 18, 2015

Deuses reunidos



Reboliço nos céus
agitação na terra

Perdição nos ares
revolta nos mares

Andam uma vez reunidos
aqueles outrora sumidos

E transmuta-se a natureza
no que há de belo e raro

E imitamos por faro
animados de beleza

Serviçais da reunião

Último sol



Ao clarão do último sol da tarde
a profundeza do mar
que me chamo
de eu

Vale de rios



Vale de rios
mares de fios
corredores sem ribanceira
correm, as dores, certeiras

Vale de risos
marés de água doce
temperadas com lágrimas
sais vertidos nas águas

sexta-feira, abril 10, 2015

Alvoroço



Jogados ao vento
embaralhados pelo destino
entrelaçados de natureza
irmanados na busca de sol

Não há tronco velho
ou rebento moço
na brotação da vida
alvoroço

Folhas



Ponta de galho
falho

Ponta de broto
roto

Folhas
de espaço falho

Folhas
de tempo roto

Há um verde sem parar

sexta-feira, abril 03, 2015

Uma costela esquerda

Te daria uma costela esquerda
para aliviar tua dor

Daria uma costela esquerda
para recompor teu equilíbrio

Uma costela esquerda
para sanar teu ânimo

Costela esquerda
para que me carregues contigo

Esquerda, 
para estar sempre a teu lado

quarta-feira, abril 01, 2015

Dois espelhos: um exercício de escuta do olhar compartilhado

O motivo

No dia 01 de fevereiro de 2015 estive com amigos no Auditório do Ibirapuera - Oscar Niemeyer - para o show de lançamento do álbum “O Tempo e o Branco”, de Consuelo de Paula. No meio das surpresas do dia tive também a fortuita oportunidade de conhecer as meninas do grupo “A Quatro Vozes”, que lá estiveram para prestigiar o trabalho da Consuelo. Foi num bate papo com a Jurema que surgiu a “intriga” deste texto. Ela me disse que havia ganhado dois espelhos, e que estava pensando no que fazer com este presente inusitado. Deste ponto em diante, fiquei curioso com o motivo: dois espelhos. Como havíamos falado também sobre os processos de escuta de nossos dias, vi a oportunidade de entender estes dois espelhos como processo de escuta, mais propriamente como processos de olhar e escutar.


O caminho

Optei pelo seguinte caminho: tratar os dois espelhos como metáforas das dicotomias como eu vejo o outro e como o outro me vê, e também como eu me vejo e como eu vejo o modo como sou visto por mim e pelo outro, transitando entre o fato e a ficção. Depois me propus ao breve aceno do olhar atento como processo de escuta, ancorado no pensamento de Josep M. Esquirol, resgatando a definição de respeito como voltar a olhar, para associar ao espelho. Deste ponto, passei à análise do olhar como uma forma de ouvir, que acontece na intimidade do sujeito, como escuta interna do próprio pensamento. Por fim, recorri à narrativa do Mito de Narciso para mostrar como o recurso da fala foi uma alternativa não usada para fazer-se ouvir a um Narciso que só podia ser admirado. Aqui me servi também de uma reflexão de Muniz Sodré para entender a cultura do olhar-escutar a si mesmo, tendo no selfie a expressão mais atual do processo de isolamento que pare exercer tanto fascínio com promessas de prazer e paz. O caminho dos dois espelhos nos aparece, então, como uma via para resgatarmos a nós mesmos no diálogo com o outro, através de um exercício de olhar-escutar que é mais pleno se acontece na partilha da vida.


As dicotomias: fato e ficção

Nossas relações cotidianas poderiam ser descritas pelo trânsito entre dois espelhos: como vemos o outro e como o outro me vê.

Como eu vejo o outro é sempre uma apreensão que não acontece livre das minhas experiências e pré-concepções. Levados pela imediatez do olhar, nosso esforço de conhecimento procura ver o outro dentro de categorias dadas previamente, desta maneira o reconhecemos como outro. Talvez quem se aproxima de mim esteja usando sua roupa mais confortável, ou seu sorriso mais sincero. Mas se meu olhar não for capaz de aprender o encanto deste mistério, eu mesmo me encarrego de mudar o conforto da roupa e a sinceridade do sorriso.

Neste sentido, o espelho de como o outro me vê, também está fadado a este processo de descobrimentos e encobrimento a que nosso olhar nos submete. Mas quando sou eu quem sou visto, pode surgir a curiosa dúvida sobre como o outro me vê. Podemos até fiar-nos no que os outros dizem de nós, sobre como eles nos veem. Mas ainda assim não saberemos se o que eles viram foi o que mostramos de nós ou o modo como eles viram o que mostramos. A dúvida persistirá.

Deste modo, nos vemos diante de outra dualidade de espelhos: como eu me vejo e como eu vejo o modo como sou visto por mim e pelo outro.

O modo como eu me vejo está bem mais próximo de me mostrar como eu sou, o fato que eu sou a mim mesmo. Quando me vejo, sei bem os limites das fantasias e realidade que me fazem escolher esta ou aquela roupa, esboçar esse ou outro sorriso. Não fugimos de nos mentir, mesmo o auto engano é um processo consciente, pois se não o fosse não seria um processo auto realizado, não saberíamos dimensionar a enganação à que nos submetemos. Olhar a nós mesmos nos dá proximidade do fato que somos, mas não a totalidade, porque enquanto vivemos, há sempre algo a mais de nós a mostrar para nós mesmos e para os outros.

Além do como me vejo, há também o modo com eu vejo o que vejo de mim e o modo como vejo como sou visto pelos outros. Se o modo como me vejo é mais próximo do fato que sou, o modo como vejo como sou visto não é tão fatual assim. Mais que isto, ele é ficcional. O modo como eu vejo o que vejo de mim e como vejo como os outros me veem, para além do jogo de palavras, me coloca na atividade de interpretar o produto destas formas de ser visto. Ao olhar-me no espelho, posso alinhar a coluna, esboçar um sorriso e deixar o penteado impecável. Mas ao dar meia volta, o primeiro vento da esquina desalinha tudo. Crio a mim mesmo uma figura que não me segue depois que dou as costas ao espelho. O contrário também pode acontecer. Posso deparar-me com meu cansaço refletido no espelho e, ao sair de encontro aos outros, sou tomado de outra postura por conta do convívio ou das circunstâncias do momento. Mas nestes dois casos, como vejo o que vejo de mim é uma ficção, uma história contada à revelia de um ator que está sempre aprendendo a encarnar a personagem. Assim, também é uma ficção o modo como vejo a maneira como sou visto, pois o que o outro vê de mim já é isto mesmo uma interpretação dos fatos encontrados ou desencontrados que eu mesmo coloquei diante dele.


Um olhar que fala

Essas formas de olhar como vemos a nós mesmos e como somos vistos, enquanto ficção, nos remete ao fato de que durante este olhar nós empreendemos um monólogo: nosso pensamento, na tentativa de interpretar como vemos o que vemos e como somos vistos, começa a narrar os fatos. Este monólogo, às vezes, se transforma num falatório. Pensamento e imaginação travam um embate contando para nós o “como” nos vemos e somos vistos. Este falatório, por assim dizer, nos põe na atitude de escuta. Vemos a nós mesmos e procuramos ver como somos vistos através de narrativas ficcionais de nosso pensamento e imaginação. Nosso olhar se torna eloquente. E nos fala mais que a boca!

O filósofo espanhol Josep M. Esquirol resgata esta ideia no livro “O Respeito ou O Olhar Atento”[1]  ao recordar a noção de que a palavra respeito é derivada do verbo latino respicere, que quer dizer: olhar atrás, voltar a olhar. Este olhar atrás, tornar a olhar, também nos faz escutar outra vez. Saímos do imediatismo da primeira impressão e voltamos, de forma mais atenta, a olhar e escutar de novo, com respeito. Esta forma de olhar, segundo Esquirol, nos tira da indiferença, da ficção de nossas interpretações, e nos põe de volta ao convívio atento, ao diálogo respeitoso.

Olhar no espelho do que vemos, como vemos e como somos vistos é uma forma de escutar-se, porque o nosso olhar é povoado de palavras[2].

Antes mesmo de falar o que vemos, descrevendo o fato, ou falar como vemos o que vemos ou como somos vistos, narrando a ficção, nosso pensamento e nossa imaginação produzem um discurso do olhar, um discurso que ouvimos internamente. Quando verbalizamos o que escutamos de nós mesmos, estamos pondo à tona da realidade fato e ficção. E, se nos equivocamos em nosso discurso verbalizado, com todo respeito, nos toca voltar a olhar de novo, atentamente, e ouvir-nos uma vez mais. Esta retomada do diálogo conosco mesmos deve estar orientada ao diálogo com o outro, caso contrário nós corremos o risco de fechar os olhos para o outro e para a realidade. Esta atitude nos colocaria de volta no monólogo e, consequentemente, perderíamos a noção do fato, da realidade, e passaríamos a viver a ficção, vendo e ouvindo fantasias.


Quebrando espelhos: o olhar silenciado

Narciso cresce sem se ver. É belo. Cobiçado pelas ninfas. Em caça, seguido pela ninfa Eco, ele recusa o amor em um abraço. Eco se esconde. Narciso, cansado, recosta-se junto a água. Ele se vê por primeira vez, mas não se reconhece. Morre na exaustão tentando agarrar a imagem de si mesmo.

Narciso não se conhece, porque faltou-lhe um outro eu que lhe devolvesse o reflexo de sua própria imagem. A ninfa Eco não foi capaz de ajudá-lo, pois ela estava condenada a somente repetir os últimos sons que ouvia. Narciso morre sozinho, na solidão e no silêncio de um espelho só: o reflexo desconhecido de si mesmo![3]

Este mito oferece material a muitas interpretações e análises. O que nos chama a atenção aqui é o fato de Narciso não reconhecer a si mesmo quando se vê por primeira vez. Este auto-conhecimento que lhe falta ao olhar é fruto do silêncio no qual ele viveu recluso: Narciso pode até ter falado consigo mesmo, mas nunca falou para si a partir daquilo que os outros viam dele. Fazemos esta suposição apoiados na ideia de que Narciso só sabia de si mesmo “o que” ele era: belo. Mas isto não é suficiente para ajudar a construir a noção de “quem” ele era, já que nos reconhecemos a partir do olhar dos outros sobre nós. Faltou a Narciso um outro espelho.

Seguindo esta ideia, nos perguntamos sobre as maneira com as quais nós hoje no colocamos na atitude de olhar somente a nós mesmos e, consequentemente, a escutar só a nós.

Muniz Sodré[4] discute esta questão em seu texto “Liberdade de viver no espelho”. Para ele, muitos de nós, ao adotarmos o selfie como uma maneira de expressão e inserção num mundo real ou virtual, é uma tentativa de alcançar visibilidade no plano do reconhecimento social. Embora as tecnologias de informação partam do pressuposto de estabelecer a comunicação entre as pessoas, estabelecer conexões, o resultado nem sempre é este. Sodré diz que “o selfie é só um pequeno índice dessa possibilidade infinita de reprodução no espelho em que, a pretexto de uma conexão com o outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como um átomo isolado num paisagem social de seres nômades ou dispersos”[5].

O selfie responde a uma necessidade de ser visto, como um clamor ao respeito: queremos que o outro nos veja, nos curta, mas não queremos ouvir o que o outro vê de nós, pois não há importância em ver o outro. O selfie acaba, então, valendo só para nós mesmos. “A participação nas redes sociais, a obsessão dos selfies - tanto falar e ser falado quanto ser visto - são índices do desejo de espelhamento”[6]. Mas ao buscarmos somente sermos falados e vistos, não nos interessando falar e ver o outro, esse desejo de espelhamento se realiza com um espelho só. Assim, nós quebramos o espelho do outro. É interessante para nós que o outro nos veja. Mas não é interessante ouvir como o outro nos vê. Isto, com certeza, não iria coincidir com o nosso selfie.

Ao quebrarmos o espelho do outro, silenciamos seu olhar. A nós nos basta sermos vistos. Na postura do selfie não há espaço para escuta, por isso não há diálogo. Na postura do selfie há somente uma reprodução repetida de nós mesmos que ecoa à nossa frente confirmando só o personagem que montamos diante do espelho. O outro, recusado do mesmo modo que a ninfa Eco, nos observa escondido por entre as folhagens das páginas virtuais onde nos estampamos. Este outro escondido, a quem recusamos o amor num abraço, tem a função de repetir nossas últimas palavras, sem refletir no espelho onde nos vemos, até que vire rocha entre os arbustos de nossas relações silenciadas. Então, na esteira do mito de Narciso, quando o outro se tornar pedra esquecida, chegaremos à exaustão de tentar agarrar a nossa imagem num espelho só. Estaremos fadados à solidão, ao silêncio e ao desaparecimento.


Olhar e escutar: o nosso resgate

Cada coisa é sempre a coisa que é. Todo espelho existe enquanto objeto. Mas cada espelho alcança sua plenitude somente quando realiza aquilo para que existe: refletir. Os espelhos podem refletir coisas, mas estas continuarão sendo o que são, inclusive, indiferentes ao espelho. Quando os espelhos refletem pessoas, a realização é bem outra. Os espelhos, mesmo sem saber, refletem vida. Nós, diante deles, reconhecemos vida: nossa vida que, em busca de felicidade, partilha vida com o outro.

Esta nossa reflexão procurou partir de uma casualidade de um presente de dois espelhos para, através de uma metáfora, discutir a importância de uma escuta originada pelo olhar. Num olhar sobre nós mesmos, mas que só atinge o nível do diálogo quando acolhemos o olhar do outro sobre nós. O que ouvimos de nós mesmos não nos basta. O que ouvimos do outro sobre nós nos complementa.

Não seria nada funcional pendurarmos em nossas casas dois espelhos na parede. Não se trata disto. Mas é vital escutar o que vemos de nós mesmos e escutar como somos vistos pelo outro. Esse diálogo de olhar-escutar não acontece só com palavras, mas também com imagens. Embora tenhamos tantos meios de nos comunicar a distância, precisamos resgatar o diálogo da presença. Afinal de contas, ninguém se olha no espelho a distância! Por que então nos escutaríamos desde tão longe se podemos estar lado a lado, frente a frente?

Preciso do meu espelho.
Mas também preciso do seu!


Adriano Lima
Outono Paraisense 2015





[1] PIRES, Francisco Quinteiro. “O domínio dos homens indiferentes”. O Estado de São Paulo. 14 de setembro de 2008. Cultura. p. D6.
[2] Sugestão de sensibilização da escuta do olhar: pedir a pessoas que façam caras para as seguintes palavras: a) felicidade - tristeza; b) bondade - braveza; c) prazer - dor; d) calma - pressa; e) paz - guerra; f) sol - chuva. Fotografar estas caras e pedir aos presentes que digam o que pensam (o que seria já o resultado de terem escutado o que viram). Esta é uma dinâmica par ajudar a demonstrar como vemos o que vemos e que o nosso modo de ver nos diz ora o fato (o que descrevemos), ora a ficção (o que narramos).
[3] Cfr. VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Mitos gregos. São Paulo: Sol/Objetivo, s/d. pp. 17-18; e “O mito de Eco e Narciso” in BULFINCH, Thomas, 1796-1867 - Bufinch’s Mythology: texto integral, tradução Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2015.
[4] SODRÉ, Muniz. “Liberdade de viver no espelho”. in O Estado de São Paulo. Aliás. 21 de dezembro de 2014, p. E2.
[5] Cfr. Sodré, 2014, op. cit.
[6] Cfr. Sodré, 2014, op. cit.

Cada guerra

Cada guerra consigo enterra uma lógica de funcionamento Com a arma mais potente vem a verdade mais forte Cada morte é uma moeda com dois lad...