Foi numa tarde de chuva, dessas
que a gente não se anima a sair de casa. Não tinha vento uivante, nem mesmo
trovoadas estourando no céu.
Socorro gritava, como se fosse com
seu último fôlego: pedia aos céus que Lua Cheia não fosse para a panela.
...
Era uma vez um galo. Até então um
galo qualquer, sem nome, desses que se vê por aí, perambulando desconfiado e
atento ao que se passa dos dois lados de seu bico. Morava num galinheiro de
portas abertas. Tinha um teto para se proteger da chuva, e tinha um grande
quintal para vagar livremente.
Levava tranquila sua vida de galo
moço, não era frangote. Era já galo feito, mas ainda não era o maioral. No
galinheiro onde morava, outro galo fazia as honras que manda a natureza. O galo
moço cantava, mas era o segundo da fila do dia. Batia as asas junto com o galo
do pedaço, mas ficava mudo diante do canto que despertava as bandas da
vizinhança.
Certo dia, um agito rondava o
galinheiro. Todas as galinhas cacarejavam afobadas, frenéticas, volteando o
pescoço para todos os lados. Alguma coisa no ar não cheirava bem. As galinhas
mais experientes amontoavam os pintainhos ao redor de si. As mais jovens, mesmo
alvoroçadas, ciscavam aqui e ali, desnorteadas como sempre.
Vieram os donos do galinheiro,
mas alheios ao frenesi das aves, jogaram o milho pelo chão, conferiram a água
do galinheiro e voltaram aos seus afazeres do dia. Houve um alvoroço só, um
misto de satisfação e desconfiança. Por alguns instantes era hora de festa.
Mas, acabado o milho, o medo e agitação do desassossego voltaram. Foi assim pelo
resto do dia.
Ao anoitecer, como acontecia
sempre, cada um procurava o poleiro ou uma laranjeira onde passar a noite. Era
uma noite enluarada de lua cheia. Mas aquele anoitecer não era o mesmo: um
vulto preto se aproximava lentamente, sorrateiro pelo chão. Era o Gato
Desespero, um intruso da vizinhança. Passara o dia no muro, ora dormindo, ora
espreitando as galinhas, como se elas desfilassem para ele numa passarela.
De súbito, o Gato Desespero
avança em disparada na direção de uma das galinhas. Começa uma gritaria só. O
galo moço, num ímpeto que a natureza raramente brinda às aves, avança sobre o
Gato Desespero e, com suas esporas não de todo pontiagudas, despacha o invasor com
uma saraivada de bicadas e esporadas, para a sorte daquela galinha, prestes a ser
abocanhada.
O alvoroço se desfaz. Mas o galo
moço não será mais o mesmo. As outras galinhas do galinheiro se aproximam e
começam a chamá-lo de Socorro, Galo Socorro, e à galinha salva por ele de
Galinha Sorte Grande. Mas o herói da noite lha dá outro nome: Galinha Lua
Cheia, pois não menos cheio que a lua daquela noite, estava seu coração diante
de sua donzela salva do perigo.
Na madrugada do dia seguinte, uma
nova rotina estava por começar no galinheiro: o Galo Socorro, agora, passa a cantar
de galo. Ele já estava bem treinado neste ofício natural. Mas nesta manhã
nascente, do alto do telhado do galinheiro, ele tinha os olhos fitos no
horizonte, que se despedia da escuridão da noite, e na Galinha Lua Cheia, que
lhe dava as boas-vindas ao seu coração.
Socorro e Lua Cheia começavam sua
história de amor. Eram o mais novo casal do galinheiro. Tinham tudo para seguir
felizes um ao lado do outro. Nem mesmo o Gato Desespero se atreveria a
perturbar, no galinheiro, a paz das aves.
Mas outra tragédia estava por
acontecer. Num dia frio, desses que amanhecem sob neblina, o Galo Socorro mal
podia imaginar que seria seu canto a chave para abrir aquele dia de desgraça.
Mal sabia ele que o dia estava perfeito para uma canja. O nevoeiro da manhã foi
cedendo lugar à luz do sol, mas o frio era maior. E como se só isso não
bastasse, a tarde foi mostrando algumas nuvens se amontoando no céu, como se
fossem as galinhas mais velhas do galinheiro, amontoando-se para se aquecer
mais. Mas as nuvens do céu se uniam por outro motivo.
E foi nesta tarde de chuva,
dessas que a gente não se anima a sair de casa, que tudo aconteceu. Não tinha
vento uivante, nem mesmo trovoadas estourando no céu. Os donos do galinheiro
vieram. Traziam um punhado de milho nas mãos. E, pela ordem da natureza, a fome
vencia o frio. As galinhas, que estavam amontoadas, partiram em disparada na
direção daquela refeição fora de hora.
Foi então que Socorro viu Lua
Cheia ser apanhada de surpresa. Não restava dúvida: ela seria a canja daquela
noite. Socorro gritou, como se fosse com seu último fôlego: pediu aos céus que
Lua Cheia não fosse para a panela. Investiu contra aqueles gigantes, mas suas
esporas e bicadas não fizeram o mesmo efeito de outrora. Socorro lutou contra a
morte de Lua Cheia, com unhas e dentes, poderíamos dizer... mas foi em vão.
A chuva fria daquele entardecer
descarrega as nuvens do céu sobre a cabeça de Socorro. Lá em cima, o céu se
abre para dar visão à noite enluarada que se aproxima. Mas o céu enluarado
daquela noite se fecha sobre Socorro. Ele passa a noite toda cantando para a
lua. Nenhuma galinha do galinheiro, nem mesmo os assassinos de sua amada, se
atrevem a calar o seu grito. Tudo se cala.
Na manhã seguinte, Socorro não
está sobre o telhado. Está acuado num canto do galinheiro. Não houve canto
matinal. Uma outra rotina estava por começar: o Galo Socorro nunca mais
cantaria nas manhãs do dia.
E ainda hoje, nas noites de lua
cheia, ele canta com olhos voltados para os céus: pede que Lua Cheia não mingue
em seu coração.
Adriano Lima
São Sebastião do Paraíso, 07 de novembro de 2009
*Texto base usado para a criação do musical "Lua Cheia - O Galo Socorro" - Adriano Lima e Tullio Costa