O motivo
No
dia 01 de fevereiro de 2015 estive com amigos no Auditório do Ibirapuera -
Oscar Niemeyer - para o show de lançamento do álbum “O Tempo e o Branco”, de
Consuelo de Paula. No meio das surpresas do dia tive também a fortuita oportunidade
de conhecer as meninas do grupo “A Quatro Vozes”, que lá estiveram para
prestigiar o trabalho da Consuelo. Foi num bate papo com a Jurema que surgiu a
“intriga” deste texto. Ela me disse que havia ganhado dois espelhos, e que
estava pensando no que fazer com este presente inusitado. Deste ponto em
diante, fiquei curioso com o motivo: dois espelhos. Como havíamos falado também
sobre os processos de escuta de nossos dias, vi a oportunidade de entender
estes dois espelhos como processo de escuta, mais propriamente como processos
de olhar e escutar.
O caminho
Optei
pelo seguinte caminho: tratar os dois espelhos como metáforas das dicotomias
como eu vejo o outro e como o outro me vê, e também como eu me vejo e como eu
vejo o modo como sou visto por mim e pelo outro, transitando entre o fato e a
ficção. Depois me propus ao breve aceno do olhar atento como processo de
escuta, ancorado no pensamento de Josep M. Esquirol, resgatando a definição de
respeito como voltar a olhar, para associar ao espelho. Deste ponto, passei à
análise do olhar como uma forma de ouvir, que acontece na intimidade do
sujeito, como escuta interna do próprio pensamento. Por fim, recorri à
narrativa do Mito de Narciso para mostrar como o recurso da fala foi uma
alternativa não usada para fazer-se ouvir a um Narciso que só podia ser
admirado. Aqui me servi também de uma reflexão de Muniz Sodré para entender a
cultura do olhar-escutar a si mesmo, tendo no selfie a expressão mais atual do processo de isolamento que pare
exercer tanto fascínio com promessas de prazer e paz. O caminho dos dois
espelhos nos aparece, então, como uma via para resgatarmos a nós mesmos no
diálogo com o outro, através de um exercício de olhar-escutar que é mais pleno
se acontece na partilha da vida.
As dicotomias:
fato e ficção
Nossas
relações cotidianas poderiam ser descritas pelo trânsito entre dois espelhos:
como vemos o outro e como o outro me vê.
Como
eu vejo o outro é sempre uma apreensão que não acontece livre das minhas
experiências e pré-concepções. Levados pela imediatez do olhar, nosso esforço
de conhecimento procura ver o outro dentro de categorias dadas previamente,
desta maneira o reconhecemos como outro. Talvez quem se aproxima de mim esteja
usando sua roupa mais confortável, ou seu sorriso mais sincero. Mas se meu
olhar não for capaz de aprender o encanto deste mistério, eu mesmo me encarrego
de mudar o conforto da roupa e a sinceridade do sorriso.
Neste
sentido, o espelho de como o outro me vê, também está fadado a este processo de
descobrimentos e encobrimento a que nosso olhar nos submete. Mas quando sou eu
quem sou visto, pode surgir a curiosa dúvida sobre como o outro me vê. Podemos
até fiar-nos no que os outros dizem de nós, sobre como eles nos veem. Mas ainda
assim não saberemos se o que eles viram foi o que mostramos de nós ou o modo
como eles viram o que mostramos. A dúvida persistirá.
Deste
modo, nos vemos diante de outra dualidade de espelhos: como eu me vejo e como
eu vejo o modo como sou visto por mim e pelo outro.
O
modo como eu me vejo está bem mais próximo de me mostrar como eu sou, o fato
que eu sou a mim mesmo. Quando me vejo, sei bem os limites das fantasias e
realidade que me fazem escolher esta ou aquela roupa, esboçar esse ou outro
sorriso. Não fugimos de nos mentir, mesmo o auto engano é um processo
consciente, pois se não o fosse não seria um processo auto realizado, não
saberíamos dimensionar a enganação à que nos submetemos. Olhar a nós mesmos nos
dá proximidade do fato que somos, mas não a totalidade, porque enquanto
vivemos, há sempre algo a mais de nós a mostrar para nós mesmos e para os
outros.
Além
do como me vejo, há também o modo com eu vejo o que vejo de mim e o modo como
vejo como sou visto pelos outros. Se o modo como me vejo é mais próximo do fato
que sou, o modo como vejo como sou visto não é tão fatual assim. Mais que isto,
ele é ficcional. O modo como eu vejo o que vejo de mim e como vejo como os
outros me veem, para além do jogo de palavras, me coloca na atividade de
interpretar o produto destas formas de ser visto. Ao olhar-me no espelho, posso
alinhar a coluna, esboçar um sorriso e deixar o penteado impecável. Mas ao dar
meia volta, o primeiro vento da esquina desalinha tudo. Crio a mim mesmo uma
figura que não me segue depois que dou as costas ao espelho. O contrário também
pode acontecer. Posso deparar-me com meu cansaço refletido no espelho e, ao
sair de encontro aos outros, sou tomado de outra postura por conta do convívio
ou das circunstâncias do momento. Mas nestes dois casos, como vejo o que vejo
de mim é uma ficção, uma história contada à revelia de um ator que está sempre
aprendendo a encarnar a personagem. Assim, também é uma ficção o modo como vejo
a maneira como sou visto, pois o que o outro vê de mim já é isto mesmo uma
interpretação dos fatos encontrados ou desencontrados que eu mesmo coloquei
diante dele.
Um olhar que
fala
Essas
formas de olhar como vemos a nós mesmos e como somos vistos, enquanto ficção,
nos remete ao fato de que durante este olhar nós empreendemos um monólogo:
nosso pensamento, na tentativa de interpretar como vemos o que vemos e como
somos vistos, começa a narrar os fatos. Este monólogo, às vezes, se transforma
num falatório. Pensamento e imaginação travam um embate contando para nós o
“como” nos vemos e somos vistos. Este falatório, por assim dizer, nos põe na
atitude de escuta. Vemos a nós mesmos e procuramos ver como somos vistos
através de narrativas ficcionais de nosso pensamento e imaginação. Nosso olhar
se torna eloquente. E nos fala mais que a boca!
O
filósofo espanhol Josep M. Esquirol resgata esta ideia no livro “O Respeito ou
O Olhar Atento” ao recordar a noção de que a palavra respeito
é derivada do verbo latino respicere, que quer dizer: olhar atrás, voltar a
olhar. Este olhar atrás, tornar a olhar, também nos faz escutar outra vez.
Saímos do imediatismo da primeira impressão e voltamos, de forma mais atenta, a
olhar e escutar de novo, com respeito. Esta forma de olhar, segundo Esquirol,
nos tira da indiferença, da ficção de nossas interpretações, e nos põe de volta
ao convívio atento, ao diálogo respeitoso.
Olhar
no espelho do que vemos, como vemos e como somos vistos é uma forma de
escutar-se, porque o nosso olhar é povoado de palavras.
Antes
mesmo de falar o que vemos, descrevendo o fato, ou falar como vemos o que vemos
ou como somos vistos, narrando a ficção, nosso pensamento e nossa imaginação
produzem um discurso do olhar, um discurso que ouvimos internamente. Quando
verbalizamos o que escutamos de nós mesmos, estamos pondo à tona da realidade
fato e ficção. E, se nos equivocamos em nosso discurso verbalizado, com todo
respeito, nos toca voltar a olhar de novo, atentamente, e ouvir-nos uma vez
mais. Esta retomada do diálogo conosco mesmos deve estar orientada ao diálogo
com o outro, caso contrário nós corremos o risco de fechar os olhos para o
outro e para a realidade. Esta atitude nos colocaria de volta no monólogo e,
consequentemente, perderíamos a noção do fato, da realidade, e passaríamos a
viver a ficção, vendo e ouvindo fantasias.
Quebrando
espelhos: o olhar silenciado
Narciso
cresce sem se ver. É belo. Cobiçado pelas ninfas. Em caça, seguido pela ninfa
Eco, ele recusa o amor em um abraço. Eco se esconde. Narciso, cansado,
recosta-se junto a água. Ele se vê por primeira vez, mas não se reconhece.
Morre na exaustão tentando agarrar a imagem de si mesmo.
Narciso
não se conhece, porque faltou-lhe um outro eu que lhe devolvesse o reflexo de
sua própria imagem. A ninfa Eco não foi capaz de ajudá-lo, pois ela estava
condenada a somente repetir os últimos sons que ouvia. Narciso morre sozinho,
na solidão e no silêncio de um espelho só: o reflexo desconhecido de si mesmo!
Este
mito oferece material a muitas interpretações e análises. O que nos chama a
atenção aqui é o fato de Narciso não reconhecer a si mesmo quando se vê por
primeira vez. Este auto-conhecimento que lhe falta ao olhar é fruto do silêncio
no qual ele viveu recluso: Narciso pode até ter falado consigo mesmo, mas nunca
falou para si a partir daquilo que os outros viam dele. Fazemos esta suposição apoiados
na ideia de que Narciso só sabia de si mesmo “o que” ele era: belo. Mas isto
não é suficiente para ajudar a construir a noção de “quem” ele era, já que nos
reconhecemos a partir do olhar dos outros sobre nós. Faltou a Narciso um outro
espelho.
Seguindo
esta ideia, nos perguntamos sobre as maneira com as quais nós hoje no colocamos
na atitude de olhar somente a nós mesmos e, consequentemente, a escutar só a nós.
Muniz
Sodré
discute esta questão em seu texto “Liberdade de viver no espelho”. Para ele,
muitos de nós, ao adotarmos o selfie como
uma maneira de expressão e inserção num mundo real ou virtual, é uma tentativa
de alcançar visibilidade no plano do reconhecimento social. Embora as
tecnologias de informação partam do pressuposto de estabelecer a comunicação
entre as pessoas, estabelecer conexões, o resultado nem sempre é este. Sodré
diz que “o selfie é só um pequeno
índice dessa possibilidade infinita de reprodução no espelho em que, a pretexto
de uma conexão com o outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como um átomo
isolado num paisagem social de seres nômades ou dispersos”.
O
selfie responde a uma necessidade de
ser visto, como um clamor ao respeito: queremos que o outro nos veja, nos
curta, mas não queremos ouvir o que o outro vê de nós, pois não há importância
em ver o outro. O selfie acaba,
então, valendo só para nós mesmos. “A participação nas redes sociais, a
obsessão dos selfies - tanto falar e
ser falado quanto ser visto - são índices do desejo de espelhamento”.
Mas ao buscarmos somente sermos falados e vistos, não nos interessando falar e
ver o outro, esse desejo de espelhamento se realiza com um espelho só. Assim,
nós quebramos o espelho do outro. É interessante para nós que o outro nos veja.
Mas não é interessante ouvir como o outro nos vê. Isto, com certeza, não iria
coincidir com o nosso selfie.
Ao
quebrarmos o espelho do outro, silenciamos seu olhar. A nós nos basta sermos
vistos. Na postura do selfie não há
espaço para escuta, por isso não há diálogo. Na postura do selfie há somente uma reprodução repetida de nós mesmos que ecoa à
nossa frente confirmando só o personagem que montamos diante do espelho. O
outro, recusado do mesmo modo que a ninfa Eco, nos observa escondido por entre
as folhagens das páginas virtuais onde nos estampamos. Este outro escondido, a
quem recusamos o amor num abraço, tem a função de repetir nossas últimas
palavras, sem refletir no espelho onde nos vemos, até que vire rocha entre os
arbustos de nossas relações silenciadas. Então, na esteira do mito de Narciso,
quando o outro se tornar pedra esquecida, chegaremos à exaustão de tentar
agarrar a nossa imagem num espelho só. Estaremos fadados à solidão, ao silêncio
e ao desaparecimento.
Olhar e escutar:
o nosso resgate
Cada
coisa é sempre a coisa que é. Todo espelho existe enquanto objeto. Mas cada
espelho alcança sua plenitude somente quando realiza aquilo para que existe:
refletir. Os espelhos podem refletir coisas, mas estas continuarão sendo o que
são, inclusive, indiferentes ao espelho. Quando os espelhos refletem pessoas, a
realização é bem outra. Os espelhos, mesmo sem saber, refletem vida. Nós,
diante deles, reconhecemos vida: nossa vida que, em busca de felicidade,
partilha vida com o outro.
Esta
nossa reflexão procurou partir de uma casualidade de um presente de dois
espelhos para, através de uma metáfora, discutir a importância de uma escuta
originada pelo olhar. Num olhar sobre nós mesmos, mas que só atinge o nível do
diálogo quando acolhemos o olhar do outro sobre nós. O que ouvimos de nós mesmos
não nos basta. O que ouvimos do outro sobre nós nos complementa.
Não
seria nada funcional pendurarmos em nossas casas dois espelhos na parede. Não
se trata disto. Mas é vital escutar o que vemos de nós mesmos e escutar como
somos vistos pelo outro. Esse diálogo de olhar-escutar não acontece só com
palavras, mas também com imagens. Embora tenhamos tantos meios de nos comunicar
a distância, precisamos resgatar o diálogo da presença. Afinal de contas,
ninguém se olha no espelho a distância! Por que então nos escutaríamos desde
tão longe se podemos estar lado a lado, frente a frente?
Preciso
do meu espelho.
Mas
também preciso do seu!
Adriano
Lima
Outono
Paraisense 2015
Cfr. VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de.
Mitos
gregos. São Paulo: Sol/Objetivo, s/d. pp. 17-18; e “O mito de Eco e
Narciso”
in BULFINCH, Thomas, 1796-1867 - Bufinch’s Mythology: texto integral, tradução Luciano Alves Meira. São
Paulo: Martin Claret, 2006. Disponível em: .
Acesso em: 19 mar. 2015.