segunda-feira, maio 12, 2008

Persuasão Poética no poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa

A imaginação, fonte principal da poesia, é o reino do impossível hic et nunc, não do impossível em si. A imaginação, pelo contrário, existe porque existe o impossível.
Armindo Trevisan, Reflexões sobre a poesia. 1993, p. 6.

Resumo

O presente artigo analisa o poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa em comparação com a estrutura da seqüência discursiva na tentativa de demonstrar que a estética da poesia não é prejudicada quando o leitor tenta entender o poema a partir de sua intencionalidade persuasiva. Esta possibilidade reside no fato de que tanto o discurso persuasivo quanto o poema podem se servir de recursos comuns como a metáfora e a metonímia.

Palavras-chave: poesia, persuasão, seqüência discursiva, metáfora, metonímia.


Abstract
This paper analyses Fernando Pessoa’s poem “Autopsicografia” making an analogy between the poem’s structure and the discoursive sequence structure in order to show that the poetry aesthetics is not damaged if the reader tries to understand the poem from its persuasive intentionality. This possibility lies on the fact that even the persuasive speech as the poem can use the same recourses like metaphor and metonymy.

Key words: poetry, persuasion, discoursive sequence, metaphor, metonymy.

1 Introdução

1.1 Pode a poesia ser argumentativa ou persuasiva?

A linguagem poética pode, como todas as outras, percorrer as planícies dos três grandes modos organizacionais do discurso, já que estes modos não são autônomos, mas dominantes (CITELLI, 2003, p. 37). Nossa proposta foi analisar o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, sem o receio de que esta análise pudesse desvirtuar o vigor caracteristicamente poético deste trabalho de Pessoa.

Vemos que entre os modos lúdico, polêmico e autoritário, o poema de Pessoa seria, predominantemente, um discurso lúdico, no qual o menor grau de persuasão não é em nada menos efetivo, pois a dinâmica estabelecida pelas figuras metafóricas e metonímicas favorece o “[...] jogo de interlocuções” (Ibidem, p.38) próprio do discurso lúdico.

Neste “jogo de interlocuções” percebemos, ainda, a ampliação do sentido na polissemia de algumas das palavras ao longo do poema, o que leva o leitor à “[...] poesia da descoberta; a aventura dos significados passa a ter o sabor do encontro de outros significados” (Ibidem).

O processo argumentativo será percebido nesta ampliação de horizonte de sentido na qual o eu lírico dialoga com o leitor sem as barreiras predispostas pela experiência do leitor, pois a estética da poesia é antes emoção e depois, razão. É a este processo persuasivo de convencimento, que passa antes pelo coração, que chamamos de persuasão poética. Antes de convencer o pensamento, a poesia quer convencer o sentimento:

A emoção caracteriza-se por sua natureza concreta: ou se sente amor, ou não se sente. Pode-se ter idéias nas quais não se acredita, mas não se pode ter emoções que não nos envolvam (TREVISAN, 1993, p. 21).

2 Desenvolvimento

2.1 A possibilidade de persuasão

Quando falamos em persuasão aceitamos que vigora a relação entre emissor e receptor, no eixo cujo objetivo é que um convença o outro de uma verdade. É o que afirma Citelli:

De certo modo, o ponto de vista do receptor é dirigido por um emissor que, mais ou menos oculto, e falando quase impessoalmente, constrói sob a sutil forma da negação uma afirmação cujo propósito é o de persuadir alguém acerca da verdade de outrem (CITELLI, 2003, p. 6).

A persuasão pode ser encontrada em diversas seqüências discursivas e cada uma delas irá se mostrar capaz de convencer no que lhe próprio. Mesmo a poesia persuade na arte das palavras e do no trabalho do sentido.

2.2 Os limites e meandros da persuasão poética

Citelli, 2003, diz “[...] que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo” (Ibidem). Nesta imagem podemos entender que a embalagem do produto, concordando que o autor na sua análise sobre a propaganda e o slogan, é anterior ao produto na hora do convencimento da compra e, no caso das palavras, do convencimento pelo sentido. O autor diz que poucas “organizações discursivas” não são persuasivas, “[...] talvez a arte, algumas manifestações literárias, jogos verbais, um ou outro texto marcado pelo entendimento lúdico” (Ibidem). Mas quando ele comenta o percurso da retórica no século XIX, o autor critica o uso deste recurso como “[...] verniz do estilo” (Ididem, p. 15) e cita os parnasianos brasileiros. Nesta crítica vemos que o abuso do recurso persuasivo impediria a poesia de realizar seu papel.

Após sua crítica ao “vazio da retórica”, Citelli, 2003, apresenta o moderno robustecimento desta arte das palavras na releitura dos conceitos aristotélicos presentes na obra “A arte retórica” com um comentário de Valéry “[...] sobre o papel de primeira importância que desempenham em poesia ‘os fenômenos retóricos’ ”(DUBOIS[1] apud CITELLI, 2003, p. 17).

Entendemos que a poesia, então, está neste limiar entre ser persuasiva ou não, dada sua capacidade de condensação do sentido e, por isso, des-veladora e veladora do sublime.

2.3 Recursos persuasivos destacados no poema

Encontramos no poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, a evidenciação de alguns recursos retóricos que o tornam persuasivo. Nosso pressuposto é que de o primeiro requisito à dinâmica da persuasão, a relação emissor-receptor, foi cumprido na oferta que o poeta faz trazendo ao mundo, em palavras poéticas, uma verdade sua. Mas para persuadir não basta falar ou escrever. Pessoa articula algumas figuras como a metáfora e a metonímia para convencer seu leitor. Mesmo que a poesia se apresente, neste nosso exemplo, de modo mais abreviado que um discurso argumentativo, a extensão não é barreira à intencionalidade persuasiva. As figuras retóricas, assim sendo, vão cumprir “[...] a função de redefinir um determinado campo de informação, criando efeitos novos e que sejam capazes de atrair a atenção do receptor” (CITELLI, 2003, pp. 19-20), independente dos limites espaciais do texto.

Antes da análise dos recursos persuasivos, vamos ao poema:


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração. (PESSOA, 2008)


Na metonímia “fingidor” o termo contíguo “finge dor” quase escapa à “[...] relação objetiva entre o plano de base e o plano simbólico” (CITELLI, 2003, p. 21), não fosse a reiteração fonético-semântica presente nos três versos posteriores. As metonímias “o poeta” e “um fingidor” cumprem seu papel de “[...] aproximação entre cada um de nós” (Ibidem), o que estabelece, já no primeiro verso, um vínculo claro e objetivo entre o eu lírico e o leitor.

A condensação deste verso vai se desdobrar nos demais versos e, de forma circular, irá atestar a declaração inicial do título. Como o poema está em terceira pessoa, a despeito do intimismo do título, cada leitor pode experimentar a leitura com uma fala sobre si mesmo ou a partir de si mesmo, como se fosse o autor do poema.

Esta aproximação metonímica do eu lírico com o eu leitor vai se consolidar na transferência metafórica do termo “fingidor” presente nos quatro versos da segunda estrofe. Assim o termo “fingidor” é ambíguo, pois se metonimicamente se refere ao poeta tomando o artista por sua arte, metaforicamente o termo pode ser transposto ao leitor como fingidor da dor que não tem.

O poema ainda ganha ares de texto argumentativo se considerarmos as três etapas comumente usadas na descrição de uma dissertação. Estas etapas aparecem bem definidas ao longo das três estrofes, em comparação direta com a estrutura de uma dissertação.

No poema temos a seqüência de proposição no título e na primeira estrofe. Temos uma explicação na segunda estrofe e a conclusão na terceira. A título de compreensão propomos a apresentação esquemática abaixo:

Estrutura argumentativa:

A - proposição: título e primeira estrofe do poema;
B - explicação: segunda estrofe;
C - convencimento: terceira estrofe;

Estrutura dissertativa:

A - introdução: título (declaração inicial) e primeira estrofe do poema;
B - desenvolvimento: segunda estrofe;
C - conclusão: terceira estrofe;


Para finalizar nosso raciocínio de que o poema se configura ao modo de uma seqüência discursiva persuasiva, fazemos notar como a terceira estrofe se mostra como uma conclusão das estrofes anteriores. Já no início temos uma conjunção aditiva e uma conjunção conclusiva “E assim”, que podem ser descritas como “indicadores de conclusão” (CAMPEDELLI; SOUZA, 2000, p. 385), ou “operadores argumentativos” (KOCH, 2002, pp. 102-108), recursos próprios em seqüências discursivas que usam o argumento por raciocínio lógico.

Em seguida encontramos duas metáforas “calhas de roda” e “comboio de corda”. Elas, de um modo mais próximo ao universo do leitor, cumprem o papel de conduzir a opinião de quem lê à conclusão de que o coração pré-domina e entretém a razão quando se trata de sentir ou fingir a dor, quando se trata de ser ou não ser poeta.


4. Considerações finais

Nossa proposta era estabelecer um paralelo entre a estrutura do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, com a estrutura de uma seqüência discursiva para mostrar como o poema poderia, sem fugir ao seu objetivo poético primeiro, ser entendido como uma ponte entre a vontade de expressão do eu lírico e a vontade de entendimento do eu leitor.

Vimos ser possível estreitar nosso horizonte de entendimento da mensagem poética, mesmo através de uma postura um tanto analítica, sem ferir a estética que é peculiar à poesia. A sugestiva aproximação que Pessoa faz entre aquele que escreve o poema e aquele que o lê, primeiro verso da primeira estrofe e quarto verso da segunda estrofe, é a ponte mesma entre o poeta e seu leitor.

A poesia, na possibilidade de ser entendida como seqüência discursiva, não está aí diante de nós para ser lida a partir da razão, mas a partir de uma razão entretida pelo coração.

5. Referências bibliográficas

CAMPEDELLI, Samira Yousseff.; SOUZA, Jésus Barbosa. Português: literatura, produção
de textos e gramática. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 15ª ed., São Paulo: Ática, 2003.

PESSOA, Fernando. Autopsicografia. Disponível em: www.releituras.com//fpessoa_psicografia.asp. Acesso em: 10 maio 2008.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993. Disponível
em: www.ufrgs.br/proin/versao_2/trevisan/index.html. Acesso em: 15 set. 2007.

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[1] DUBOIS, Jean et alii. Retórica geral. São Paulo : Cultrix, 1974, p. 15.

sexta-feira, novembro 16, 2007

O gosto pela arte

O gosto pela arte: exposição na Academia Paraisense de Cultura

Boa noite a todos! Desde já agradeço a gentileza do convite para participar deste momento e partilhar da companhia agradável de todos.

Gostaria de partilhar, brevemente, um pouco de minha percepção sobre qual a relação das pessoas com a arte. Esta reflexão é resultado de uma pergunta feita a mim mesmo: o que é o gosto pela arte?

Muitas vezes o gosto pela arte está condicionado a uma experiência familiar, que acompanha o indivíduo desde a infância, ou a uma habilidade própria que, após ser descoberta ou inculcada, se desenvolve com o treino e a repetição. O não interesse pela arte, ou o “des-gosto”, pode surgir quando um destes dois fatores não existe na história de determinada pessoa, ou pelo simples fato do não-domínio de uma linguagem que permita a interpretação e, por conseguinte, o entendimento daquilo que está posto em questão como arte.

O que é a arte?

Quando nos fazemos esta pergunta, as imagens da erudição e do clássico em quaisquer formas de expressão da arte podem nos ajudar a começar a responder esta pergunta. É fácil também recorrer à estimulação dos sentidos na busca do entendimento do que é arte. O argumento da estética surge como uma tentativa mais elaborada e ampla, levando-nos a entender que a arte é a busca do belo, da perfeição.

Também podemos entender a arte a partir de determinadas funções às quais ela se presta. A utilidade pode ser um fator a ser considerado na gradação e na distinção do que pode ou não ser arte. O uso do objeto de arte é portador do requinte que eleva o ambiente e aquele que nele está.

A arte pode ainda ser vista a partir de sua função social, da sua capacidade de reunir pessoas, organizar e dinamizar objetivos pessoais e de grupo. Ela pode servir de ferramenta de luta e reivindicação, fundamentando o desejo do grupo de expressar-se, manifestar-se.

Outra função da arte, que pode ajudar-nos a entendê-la, é a de criadora de sentido. Na tarefa do conhecimento humano, a arte pode surgir como instância criadora de sentido que é capaz de deitar diante de nós inúmeras possibilidades de sentir e pensar a realidade. Através da arte e com a arte o intelecto humano quebra as barreiras reais ou imaginárias entre razão e sentimento e descobre que tudo se canta, que tudo se pinta, que tudo pode ser esculpido, que tudo se toca, que tudo se rima.

Mas como se dá nossa relação com a arte?

A arte pode ser ensinada, ser descoberta ou ela simplesmente se desperta e se manifesta ao homem? Tenho a impressão de que ao tentar responder uma ou cada uma destas perguntas, nós já estaríamos demonstrando, ao mesmo tempo, o que nós entendemos por arte.

Ela pode ser ensinada, num primeiro momento, quando é algo de concreto, perceptível às nossas sensações e descrito entre códigos, métodos e técnicas. Pode ser ensinada, em outro momento, mesmo se não é de imediato algo concreto e perceptível aos sentidos, mas à razão.

A arte pode ser descoberta pela iniciativa da curiosidade humana diante de um acaso qualquer. O contato com a obra de um clássico ou com o talhar preciso e concentrado de um artesão pode servir de guia para uma relação entre criador e criatura que jamais terá fim.

E o gosto pela arte?

Penso que o gosto pela arte pode nascer quando nos colocamos a tarefa do conhecimento, do fazer e da apreciação.

Nossos jovens e crianças, nós mesmos, podemos passar a gostar de arte quando nos debruçamos no seu estudo como meio de entendimento e diálogo com aquilo que a arte é. O fazer arte nos coloca em contato com o criador adormecido que há dentro de nós. Este fazer, que pode ser de produção ou re-produção, é sempre possibilidade de criar. A apreciação é a tarefa que pode selar nossa relação com a arte. É na contemplação da obra que o artista se manifesta.

Adriano Lima - 05-04-06, outono paraisense

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Desejo e transcendência

Aqui vai uma pequena divagação a partir da letra da música "Comida" dos Titãs
referência: ANTUNES, Arnaldo. et al. Comida. Intérprete: Titãs. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. WEA. 1987. 1CD. Faixa 8.

Desejo e transcendência

Eu concordo com a letra da música enquanto ela sugere que é preciso ir além. O confronto que ela faz sobre as necessidades básicas da vida humana com as necessidades secundárias ou mais “sublimes” sugere que o limite da nossa condição pode ser superado. Nós sabemos que um limite pode ser superado quando ele está ali, e quando a nossa curiosidade nos leva conhecê-lo, a investigá-lo.

Agora, no que a letra sugere sobre a superação do limite como transcendência, eu acho
que ela nos coloca diante de uma questão maior: é possível transcender o desejo?

A letra nos remete ao fato de que uma necessidade superada, isto é, satisfeita, nos deixa des-ocupados com uma necessidade e assim podemos nos pré-ocupar com outra necessidade a ser satisfeita. Nós, então, satisfazemos uma necessidade para que outra surja e possa também ser satisfeita. Isto é superação do limite. Mas, neste esquema, estamos presos a um outro limite: a constante satisfação das nossas necessidades. Isto é bom ou ruim? Acho que isto pode ser feito de modo bom ou ruim, mas é puramente como a vida é. Transcender este esquema ou modo de vida, modus vivendi, é uma questão implícita à letra.

Se entendermos transcendência como superação, estar além da condição atual, num plano ou nível superior, a letra não sugere que transcendemos o desejo, apenas que trocamos um desejo satisfeito por outro insatisfeito, o que pode projetar-se longamente até o instante final de nossas vidas. Deste modo, não transcendemos o desejo quando o satisfazemos. E se o fizermos, morremos. Isto porque a palavra transcender nos remete a um plano metafísico, onde o mundo concreto, físico, é um mero trampolim de reflexão. O que é curioso notar é que a nossa descoberta da transcendência, o plano do ser, passa justamente pelo mundo real e concreto, o mundo das necessidades. Então, se a letra sugere esta superação do desejo ela está certamente nos servindo como um trampolim de reflexão. Se ela não responde à pergunta “é possível transcender o desejo?”, ela nos remete a esta reflexão. E é aí que, com fome ou satisfeito, a gente transcende. É claro que dedicar-se ao pensamento de barriga vazia não é tarefa fácil, quiçá nem mesmo possível. As necessidades físicas, imanentes, são mais gritantes que as necessidades metafísicas, transcendentes.

Como poderíamos esperar um nível maior de leitura e de pensamento de quem está submerso no esquema frenético da satisfação das necessidades básicas da vida? A final de contas, “bebida é água, comida é pasto”, ler e pensar é transcender. Você transcende no quê?

Nesta Terra de Quebra-em-nós-a-cruz

Todo esse fogo alastrado terá um efeito repetido   Deixará os ricos mais podres os pobres mais puídos   Pagaremos caro no mercado ganharão a...