segunda-feira, junho 02, 2008

Caminhos de fogo e água

Os caminhos ardiam em fogo. Chamas. Fumaça sufocante. Mesmo sob a precipitação das cinzas e daquele calor intenso, atravessamos aquelas estradas como quem seguia adiante para não arrepender-se de voltar atrás. A maquinação de nossos passos marcava o nosso rumo e, nossas pegadas, apagavam-se entre as palhas ainda em brasa, caídas pelo chão. Nossas crianças não choravam mais. Não sabíamos se suas lágrimas haviam secado, ou se a natureza lhes instruíra como conservar o líquido no organismo. Ah! Se a chuva caísse! Embora temêssemos que ela se evaporasse ainda no ar, por sobre aquelas labaredas, desejávamos que ela caísse. Mas somente nossas frontes cansadas gotejavam, numa salinidade ardente, em nossos olhos. Os nossos olhos ardiam em fogo. Mais além, no horizonte, o caminho se estreitava. Os mais lúcidos dentre nós não ousavam palavra alguma. Nossos passos cantavam mais alto na batida do chão, e nossos sentidos somente acreditavam naquela dureza debaixo de nossos pés. Seguíamos a marcha ardente, ardendo. A cada passo nosso fim ficava mais próximo. Já não tínhamos mais o sol com guia. E a escuridão por sobre nossas cabeças ou era noite, ou céu de cinzas pretas, palhas esvoaçantes, que nos tornavam pretos da cor do chão, que nos tornavam negros em marcha de procissão. Éramos andantes mascarados. Andantes marcados. Andantes ardentes naquele fogo. Mas, sobretudo, éramos tão somente andantes. Haveria fim àquela desgraça? Ao primeiro grito desesperado de socorro, nós paramos. Em círculos nos reunimos e revezávamos nossas costas às ardências do fogo. No centro dos círculos o calor humano da cura. Os mais necessitados recebiam socorro, recebiam olhares, toques de carinho, as últimas águas de nossos afetos. As lavaredas, curiosas, pareciam querer espreitar-nos e flamavam sobre nossos ares. Mas o cessar de nossa marcha parecia ter desenhado um outro ritmo no fogo. Como se o ar que deslocávamos com nossos corpos tivesse deixado de alimentar as chamas desde dentro. Vimos, então, o fogo acalmar-se. Vimos as cortinas de fumaça iniciarem seu cerco ao nosso cerco. Por alguns instantes ainda nos mantivemos em roda. Naquele momento ardíamos de felicidade ao ver o inferno se apagando tão gentilmente. Nossos corpos, agora, ardiam em felicidade. Enviamos três emissários a nossa frente, enquanto mantínhamos nossa pausa curadora. Esperávamos ver em que condições poderíamos seguir caminhando por entre aquelas cortinas de fumaça. Quando, para nossa surpresa, voltaram os emissários da última esperança e aplacaram nosso desespero de morte. Há poucos metros, um precipício estava à nossa espreita. Por entre os barrancos da encosta, o fogo não havia conseguido subsistir à rala vegetação. Mais abaixo, por entre pedras, um fio d’água corria nos limites da união do abismo. Mesmo que sem forças, aquela boa notícia nos enchia de ânimo para seguir nosso caminho abaixo. A caminhada seria funda, a cura nos aguaria desde aquelas profundidades. Começamos a arder desde dentro. E iniciamos nossa descida. Nossa caminhada, agora, era ladeada cada vez mais por imensas paredes de terra e pedra. Sentíamo-nos atraídos para baixo muito mais além do que a força da gravidade poderia agir sobre nossos corpos, carnes queimadas. Queimados e ardentes por fora, buscávamos aquela água com a única certeza de que um fio de esperança ainda resistira em nosso interior. E, como a lembrança do primeiro presente, do primeiro beijo, quebramos nossa pressa e nossa sede alucinante com a nossa entrega mansa àquela água. Sentimos que mais do que nós, ela mesmo nos necessitava, ela mesmo se fazia oferta para antes e além do que naquela realidade poderíamos necessitar. Água oblativa. Fomos agraciados com aquela generosidade que parecia ignorar nossa sequidão e acalmar-nos as feridas mansa e ternamente. Não mais víamos labaredas flamantes aos nossos lados. A cortina de fumaça, reticente, seguia seu curso. O céu escuro esta tão distante. As sombras de nossas faces se desfaziam sob as águas. Deixamos o inferno lá em cima para encontrar o paraíso naquelas profundezas. A partir dos mais ressequidos e tristes aos que de nós mostravam haver conservado um fôlego a mais de energia, começamos a cantar. Nos ecos de nossas fissuras, embebidos de um vigor ardente, cantávamos: Os caminhos fluíam em água. Ondas. Frescor revitalizante.

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