segunda-feira, junho 02, 2008

A casa dos sonhos

Encontramos as janelas abertas. Todas. Escancaradas. Fomos entrando logo, mesmo que ninguém viesse nos receber. Lá fora chovia. Chovíamos em raios e trovões. Lá fora ventava. Ventávamos em suspiros e calafrios. Lá fora fazia frio. Fazíamos frio em tremores e dentes rangidos. Na calada daquela noite, nem mesmo a escuridão daqueles cômodos lúgubres far-nos-iam desistir da empreita de cruzar aqueles umbrais desconhecidos. Não éramos ladrões, desde que nada desaparecesse após nossa presença. Não éramos convidados, desde que ninguém nos esperava ali. Éramos fugitivos. Fugitivos friorentos. Fugitivos assustados. Mas nada mais que fugitivos. Aos poucos fomos nos acostumando a ouvir somente o barulho de nossos passos. A cada clarão irrompido pela tempestade íamos conhecendo um metro a mais da casa. Éramos, agora, desbravadores do espaço alheio que, na ausência aparente de seus donos, ia cada vez mais se tornando nosso. Cessaram-se os raios e trovões. A chuva agora tomava um rumo mais sereno, embora insistisse na sua faina lavatória naquela região do globo. Sentíamo-nos quase que purgados, pois que de tão molhados que estávamos já sentíamos nossas peles mesclarem-se na umidade da roupa e um peso que, pouco a pouco, ia escorrendo-se no calado monólogo daquela noite. Já não tínhamos mais os clarões. Já não tínhamos mais o encharcamento da chuva. Já não tínhamos mais a ofegante palpitação de caça, embrenhada mato a dentro, em busca de um refúgio contra o caçador. Já não tínhamos mais medo. Já não tínhamos mais o desejo de nos esconder. Tínhamos, agora, que encontrar lugar de pouso. Tínhamos sono e sede de descansar. A chuva seguia fria, embora mais fina, a labutar do lado de fora da escuridão onde nos encontrávamos. Um soluço. Um riso. Um boa-noite. Alguém relembrou como os porcos-espinhos da estorinha fizeram para se abraçar e se esquentar do frio. Abraçamo-nos. Dormimos. E, ainda no entre-sono, podíamos vagar nas imagens aclaradas pelos trovões e nos sentimos mais seguros do lugar em que nos encontrávamos. Já não mais sonhávamos, feito a caça na sofreguidão em busca de um abrigo. Seguia-nos o silêncio daquela escuridão. Sequer ousamos planejar o dia de amanhã. Bastava-nos dormir e descansar. Ainda éramos fugitivos. Contudo, fugitivos encontrados a nós mesmos. Fugitivos intransitivos. Deveras sonhamos naquela noite. Mas não conseguíamos registrar s seqüências dos atos e passagens de nossas peripécias oníricas. Contentávamo-nos em sonhar. Já o calor de nossos corpos fazia-nos ignorar a umidade fria, límpida e purgativa de momentos anteriores. Em sonhos a vida no mundo lá fora se fazia baixo um sol envolvente. Não tínhamos clarões de chuva. Tínhamos uma claridade redundante que colava em nossas mentes todos os flashes da hora da chegada naquela casa. Em sonho percorríamos todos os ambientes como senhores daquele lugar. Agora não só as janelas encontravam-se abertas. Não fosse a necessidade da construção, também o teto se abriria a um só estalar de nossos sonhos poderosos. Portas e todos os rincões daquela habitação estavam abertos, iluminados e livres. Quase nos esquecíamos que somente sonhávamos. Naquele momento, jamais admitiríamos ter sido, mesmo em sonho, fugitivos. Éramos os seres mais convencidos de nossa própria liberdade. Dificilmente soletraríamos f-u-g-i-t-i-v-o-s. De fato, sonhávamos mais que dormíamos. Já não tínhamos mais a chuva com seus clarões. Agora uma claridade silenciosamente imensa nos mostrava que as janelas ainda estavam abertas. Aos poucos nos desentrelaçamos e nem mesmo tivemos vontade de dizer bom-dia. Das poucas tralhas que carregávamos fizemos uma vistoria ocular ligeira. E como não precisávamos nem mesmo atar os cadarços de nossos sapatos, estávamos prontos para seguir nossa jornada. Fizemos nosso caminho de entrada como saída. Cruzamos outra vez os mesmos umbrais que, agora, mais pareciam prolongamentos braçais que se despediam de nós com o mesmo calor da acolhida. Continuávamos fugitivos. Mas éramos fugitivos descansados. Éramos fugitivos sonhadores. E, como se pudéssemos haver estado na mente de cada outro que nos fazia ser nós, sabíamos que agora nos tornávamos perseguidores de nossos sonhos. Seguimos nosso caminho. Deixamos as janelas abertas. Todas. Escancaradas.

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