quinta-feira, agosto 06, 2009

Uma história em traços, tintas e rabiscos


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“Singrar os mares das tintas,
aportando sempre em estilos diferentes de pintar,
é a maior travessia que qualquer artista pode efetuar”.
Linah Biasi

Assim define Linah Biasi sua trajetória como artista plástica. A infinidade de caminhos que as cores abrem e as inúmeras possibilidades de trilhá-los, lança o artista na inesgotável viagem no mar da criação. O artista está sempre às rédeas do infinito enquanto singra este mar entre traços, tintas e rabiscos. Sua travessia expõe ao olho desapercebido, preso à margem do finito, o horizonte que descortina esta realidade para além do que os olhos podem alcançar.

Traços de sua personalidade artística



Óleo sobre tela - tela de 60x90 cm
Série: Um olhar além do ovo - Hiper-realismo

Em seu trabalho, a artista Linah Biasi diz ter uma preocupação em especial com a luz. Ela dá valor à luz como o ressurgimento da escuridão. Esta experiência só pode ser sentida “a partir da experiência das trevas”. É preciso estar atento, olhos abertos para perceber a dança suave entre luz e sombra.

É neste sentido que a artista valoriza o papel da visão. Em seus trabalhos, estimular os sentidos é o caminho de diálogo entre o observador e obra de arte. Sem estimular os sentidos não há como entrelaçar o observador nesta aventura de perceber o tênue bailar das cores e temas explorados em cada obra.

Além de valorizar a visão, Linah Biasi se considera uma “amante do silêncio”. Quando está trabalhando em seu atelier, há sempre uma música para acompanhar o trabalho. Geralmente esta música, escolhida a dedo em seu esmerado acervo, é tocada num volume bastante alto. Mesmo tento uma audição seletiva, ela facilmente se desliga do mundo quando está pintando. “Ao ouvir música tenho que pôr o volume mais alto, pois me concentro fortemente na obra que estou pintando e quase me desligo de tudo mais”.

É ainda peculiar em sua personalidade artística sua maneira de olhar o mundo a sua volta. Ela se impressiona com a diversidade do feitio das expressões faciais da multidão deste país. De modo especial, são sempre percebidos como o ponto mais expressivo em cada rosto. Conta que, estando em alguns países da Europa, esta diversidade não é tão sentida. Observar a multidão no Brasil é quase uma experiência anatômica feita com os olhos. É como estar diante de uma imensa enciclopédia viva, que registra as mais variadas e possíveis combinações de feições das raças e do povo brasileiro.

Tintas nos pincéis, nas telas e nas mãos


O nome artístico Linah Biasi foi escolhido a partir de seu ambiente familiar. Do seu nome Pascoalina, veio Linah, a forma carinhosa de ser chamada pelos seus. E Biasi veio do nome de sua avó.

Linah Biasi começou a “singrar os mares das tintas” estimulada pela presença de sua tia Cecília Coelho Carreras, laureada artista em São Sebastião do Paraíso. Linah conta que, no início, sua tia resistiu ao seu interesse pela pintura. Mas depois da insistência e da condição de conseguir mais duas colegas para as aulas, Linah conseguiu começar a pintar, com a idade de nove anos.

Para suas primeiras aulas, ela não tinha material próprio e tinha que usar o material de sua tia. Sob a paleta da tia, Linah Biasi deu inicio a sua aventura no mar das tintas e, com doze anos de idade, começa a pintar sozinha. Nas voltas futuras de sua vida, Linah também teve a possibilidade de ensinar os velejos da arte a seus sobrinhos.

Com toda sua experiência como artista plástica, Linah Biasi conta que “nunca viu nem a tia nem outro artista pintando”. Este é um sonho realizar. O primeiro atelier a conhecer foi o do Sr. David, em Guaranésia - MG, que pinta flores.

A experiência com a tia, a decisão e persistência em pintar sozinha e este distanciamento de uma aprendizagem da arte a partir do modelo de outro artista pintando, seguramente ensinou Linah Biasi a empreender seu dom, sua carreira e sua profissão como autodidata. Isto nos permite dizer que, para Linah, “singrar os mares das tintas” é uma tarefa que é antes vivida e sentida na solidão do espaço de criação do artista-navegador, para depois ser compartida com o observador, tripulante ou não.

Quando indagada sobre o que é mais fácil e difícil na arte, Linah Biasi diz que “a inspiração dita o que é fácil ou difícil”. O artista está à mercê de sua inspiração. Linah diz ainda que para pintar, preparar o “campo cirúrgico” é fundamental. É imperioso para ela dispor seu local de trabalho de forma cuidadosa e detalhada. Observar a iluminação, posicionar as tintas e pincéis, deixar o telefone em local estratégico, selecionar a música. Em sua dinâmica de trabalho estes detalhes requerem precisão cirúrgica.

O ambiente bem disposto ajuda a artista a desvencilhar-se de quaisquer barreiras, por mínimas que sejam, para mergulhar no oceano de seu trabalho. A cada jornada de trabalho, somente limpar pincéis é chato!

Em sua trajetória, Linah Biasi tem se dedicado muito a fazer trabalhos por encomenda. Este tipo de trabalho lhe garante uma forma de remuneração. Contudo, para ela, é um trabalho difícil. São trabalhos direcionados ao deleite quase exclusivo de quem o encomendou. Não são trabalhos que permitem extravasar seu espírito de artista e criar a partir de sua inspiração.

Fazendo um giro completo ao redor de sua produção artística, Linah Biasi não se sente paisagista. Apesar de ter uma afeição especial em fazer flores, não se sente contente com as flores que faz.

Rabiscos do pensamento


Sobre a produção contemporânea, Linah vê pouca produção com figuras humanas. Ela pensa que isto se deve ao fato do “homem estar fugindo do homem”, ou por ser o retrato o gênero mais difícil de ser pintado. A arte moderna tem tomado terreno, por isto ao rosto saiu de moda das telas, comenta.

Seu mais recente trabalho é o que ela chama de “produção para o seu próprio deleite”. Trata-se de trabalhos realizados na perspectiva do hiper-realismo. É um desfio novo na sua carreira e um trabalho encomendado exclusivamente pela sua alma de artista. Linah diz que há muito tempo queria iniciar o trabalho com o hiper-realismo, pois até então havia feito trabalhos para o deleite dos outros, por encomendas.

Nesta primeira série de trabalho, a artista se debruça sobre a temática “Um olhar além do ovo”. Sua tentativa é explorar os meandros da presença cotidiana de ovos e outros objetos inspiradores nos lugares e formas mais rotineiros, muitas vezes desapercebidos pelo olhar estritamente utilitarista e consumidor. Este tipo de trabalho é inédito em sua obra, o que seguramente exige mais de sua capacidade técnica e aguça o empreendimento de seu espírito artístico.

Como seu espírito criador se mede pela imensidão do mar que navega, Linah tem em mente a idéia de uma próxima série de trabalhos dentro do hiper-realismo. A temática será sobre rostos e possivelmente se chamará “Feições do mundo inteiro”.

Em toda sua trajetória como artista plástica a obra que considera mais importante é “A mulher do Balseiro”, feita na adolescência em 1978. Trata-se de um óleo sobre tela de 40x30 cm, que retrata uma mulher grávida, segurando uma criança no colo, acariciando uma outra em pé à sua frente, com mais outras ao seu redor.

"A mulher do Balseiro"
Óleo sobre tela - tela de 40x30 cm
Adriano Lima
Escrito na primavera paraisense de 2005

quinta-feira, maio 07, 2009

sexta-feira, abril 10, 2009

Rubor (rubrofita adriatica)

Rubor (rubrofita adriatica)

A flor dessa flor
encanta, aos olhos,
encanta os olhos

A flor dessa flor
cheira
exala
entorpece
apetece
cala
beira

Cheira a presença de tantos olhares
Exala a lisura de tantas carícias
Entorpece as entranhas despreocupadas
Apetece os ventres mais estéreis
Cala os sentidos loquazes do hóspede
Beira os limites que a razão não alcança

A flor dessa flor
nasce aqui,
só aqui e não lá

A flor dessa flor
é matutina
laboriosa noturna

A flor dessa flor
é rubor

segunda-feira, junho 02, 2008

Decirte no

También me ha dolido a mí 
decirte no 

He descubierto 
en la ausencia de tus besos 
la paz que me brindaban 

Pero ya no podía ser más yo mismo 
al perderme en ti mientras me besabas 

Ay, qué si me perdiera a mí 
te vería aislarte en la solead 

¿Qué es el amante 
sin a quien poder amar? 

Me amaste más que a mí 
me he amado yo jamás 

Me ahogaste en tu amor 
y me vi incapaz de tapar los agujeros 
que te hiciste 

La infinidad de tu amor 
ha creado en mí un inmenso vacío 

Hoy, ante el espejo, 
me busco a mí 

Me digo desde mi dolor 
que, como a ti, 
también me ha dolido 
decirte no

Caminhos de fogo e água

Os caminhos ardiam em fogo. Chamas. Fumaça sufocante. Mesmo sob a precipitação das cinzas e daquele calor intenso, atravessamos aquelas estradas como quem seguia adiante para não arrepender-se de voltar atrás. A maquinação de nossos passos marcava o nosso rumo e, nossas pegadas, apagavam-se entre as palhas ainda em brasa, caídas pelo chão. Nossas crianças não choravam mais. Não sabíamos se suas lágrimas haviam secado, ou se a natureza lhes instruíra como conservar o líquido no organismo. Ah! Se a chuva caísse! Embora temêssemos que ela se evaporasse ainda no ar, por sobre aquelas labaredas, desejávamos que ela caísse. Mas somente nossas frontes cansadas gotejavam, numa salinidade ardente, em nossos olhos. Os nossos olhos ardiam em fogo. Mais além, no horizonte, o caminho se estreitava. Os mais lúcidos dentre nós não ousavam palavra alguma. Nossos passos cantavam mais alto na batida do chão, e nossos sentidos somente acreditavam naquela dureza debaixo de nossos pés. Seguíamos a marcha ardente, ardendo. A cada passo nosso fim ficava mais próximo. Já não tínhamos mais o sol com guia. E a escuridão por sobre nossas cabeças ou era noite, ou céu de cinzas pretas, palhas esvoaçantes, que nos tornavam pretos da cor do chão, que nos tornavam negros em marcha de procissão. Éramos andantes mascarados. Andantes marcados. Andantes ardentes naquele fogo. Mas, sobretudo, éramos tão somente andantes. Haveria fim àquela desgraça? Ao primeiro grito desesperado de socorro, nós paramos. Em círculos nos reunimos e revezávamos nossas costas às ardências do fogo. No centro dos círculos o calor humano da cura. Os mais necessitados recebiam socorro, recebiam olhares, toques de carinho, as últimas águas de nossos afetos. As lavaredas, curiosas, pareciam querer espreitar-nos e flamavam sobre nossos ares. Mas o cessar de nossa marcha parecia ter desenhado um outro ritmo no fogo. Como se o ar que deslocávamos com nossos corpos tivesse deixado de alimentar as chamas desde dentro. Vimos, então, o fogo acalmar-se. Vimos as cortinas de fumaça iniciarem seu cerco ao nosso cerco. Por alguns instantes ainda nos mantivemos em roda. Naquele momento ardíamos de felicidade ao ver o inferno se apagando tão gentilmente. Nossos corpos, agora, ardiam em felicidade. Enviamos três emissários a nossa frente, enquanto mantínhamos nossa pausa curadora. Esperávamos ver em que condições poderíamos seguir caminhando por entre aquelas cortinas de fumaça. Quando, para nossa surpresa, voltaram os emissários da última esperança e aplacaram nosso desespero de morte. Há poucos metros, um precipício estava à nossa espreita. Por entre os barrancos da encosta, o fogo não havia conseguido subsistir à rala vegetação. Mais abaixo, por entre pedras, um fio d’água corria nos limites da união do abismo. Mesmo que sem forças, aquela boa notícia nos enchia de ânimo para seguir nosso caminho abaixo. A caminhada seria funda, a cura nos aguaria desde aquelas profundidades. Começamos a arder desde dentro. E iniciamos nossa descida. Nossa caminhada, agora, era ladeada cada vez mais por imensas paredes de terra e pedra. Sentíamo-nos atraídos para baixo muito mais além do que a força da gravidade poderia agir sobre nossos corpos, carnes queimadas. Queimados e ardentes por fora, buscávamos aquela água com a única certeza de que um fio de esperança ainda resistira em nosso interior. E, como a lembrança do primeiro presente, do primeiro beijo, quebramos nossa pressa e nossa sede alucinante com a nossa entrega mansa àquela água. Sentimos que mais do que nós, ela mesmo nos necessitava, ela mesmo se fazia oferta para antes e além do que naquela realidade poderíamos necessitar. Água oblativa. Fomos agraciados com aquela generosidade que parecia ignorar nossa sequidão e acalmar-nos as feridas mansa e ternamente. Não mais víamos labaredas flamantes aos nossos lados. A cortina de fumaça, reticente, seguia seu curso. O céu escuro esta tão distante. As sombras de nossas faces se desfaziam sob as águas. Deixamos o inferno lá em cima para encontrar o paraíso naquelas profundezas. A partir dos mais ressequidos e tristes aos que de nós mostravam haver conservado um fôlego a mais de energia, começamos a cantar. Nos ecos de nossas fissuras, embebidos de um vigor ardente, cantávamos: Os caminhos fluíam em água. Ondas. Frescor revitalizante.

A casa dos sonhos

Encontramos as janelas abertas. Todas. Escancaradas. Fomos entrando logo, mesmo que ninguém viesse nos receber. Lá fora chovia. Chovíamos em raios e trovões. Lá fora ventava. Ventávamos em suspiros e calafrios. Lá fora fazia frio. Fazíamos frio em tremores e dentes rangidos. Na calada daquela noite, nem mesmo a escuridão daqueles cômodos lúgubres far-nos-iam desistir da empreita de cruzar aqueles umbrais desconhecidos. Não éramos ladrões, desde que nada desaparecesse após nossa presença. Não éramos convidados, desde que ninguém nos esperava ali. Éramos fugitivos. Fugitivos friorentos. Fugitivos assustados. Mas nada mais que fugitivos. Aos poucos fomos nos acostumando a ouvir somente o barulho de nossos passos. A cada clarão irrompido pela tempestade íamos conhecendo um metro a mais da casa. Éramos, agora, desbravadores do espaço alheio que, na ausência aparente de seus donos, ia cada vez mais se tornando nosso. Cessaram-se os raios e trovões. A chuva agora tomava um rumo mais sereno, embora insistisse na sua faina lavatória naquela região do globo. Sentíamo-nos quase que purgados, pois que de tão molhados que estávamos já sentíamos nossas peles mesclarem-se na umidade da roupa e um peso que, pouco a pouco, ia escorrendo-se no calado monólogo daquela noite. Já não tínhamos mais os clarões. Já não tínhamos mais o encharcamento da chuva. Já não tínhamos mais a ofegante palpitação de caça, embrenhada mato a dentro, em busca de um refúgio contra o caçador. Já não tínhamos mais medo. Já não tínhamos mais o desejo de nos esconder. Tínhamos, agora, que encontrar lugar de pouso. Tínhamos sono e sede de descansar. A chuva seguia fria, embora mais fina, a labutar do lado de fora da escuridão onde nos encontrávamos. Um soluço. Um riso. Um boa-noite. Alguém relembrou como os porcos-espinhos da estorinha fizeram para se abraçar e se esquentar do frio. Abraçamo-nos. Dormimos. E, ainda no entre-sono, podíamos vagar nas imagens aclaradas pelos trovões e nos sentimos mais seguros do lugar em que nos encontrávamos. Já não mais sonhávamos, feito a caça na sofreguidão em busca de um abrigo. Seguia-nos o silêncio daquela escuridão. Sequer ousamos planejar o dia de amanhã. Bastava-nos dormir e descansar. Ainda éramos fugitivos. Contudo, fugitivos encontrados a nós mesmos. Fugitivos intransitivos. Deveras sonhamos naquela noite. Mas não conseguíamos registrar s seqüências dos atos e passagens de nossas peripécias oníricas. Contentávamo-nos em sonhar. Já o calor de nossos corpos fazia-nos ignorar a umidade fria, límpida e purgativa de momentos anteriores. Em sonhos a vida no mundo lá fora se fazia baixo um sol envolvente. Não tínhamos clarões de chuva. Tínhamos uma claridade redundante que colava em nossas mentes todos os flashes da hora da chegada naquela casa. Em sonho percorríamos todos os ambientes como senhores daquele lugar. Agora não só as janelas encontravam-se abertas. Não fosse a necessidade da construção, também o teto se abriria a um só estalar de nossos sonhos poderosos. Portas e todos os rincões daquela habitação estavam abertos, iluminados e livres. Quase nos esquecíamos que somente sonhávamos. Naquele momento, jamais admitiríamos ter sido, mesmo em sonho, fugitivos. Éramos os seres mais convencidos de nossa própria liberdade. Dificilmente soletraríamos f-u-g-i-t-i-v-o-s. De fato, sonhávamos mais que dormíamos. Já não tínhamos mais a chuva com seus clarões. Agora uma claridade silenciosamente imensa nos mostrava que as janelas ainda estavam abertas. Aos poucos nos desentrelaçamos e nem mesmo tivemos vontade de dizer bom-dia. Das poucas tralhas que carregávamos fizemos uma vistoria ocular ligeira. E como não precisávamos nem mesmo atar os cadarços de nossos sapatos, estávamos prontos para seguir nossa jornada. Fizemos nosso caminho de entrada como saída. Cruzamos outra vez os mesmos umbrais que, agora, mais pareciam prolongamentos braçais que se despediam de nós com o mesmo calor da acolhida. Continuávamos fugitivos. Mas éramos fugitivos descansados. Éramos fugitivos sonhadores. E, como se pudéssemos haver estado na mente de cada outro que nos fazia ser nós, sabíamos que agora nos tornávamos perseguidores de nossos sonhos. Seguimos nosso caminho. Deixamos as janelas abertas. Todas. Escancaradas.

segunda-feira, maio 12, 2008

Persuasão Poética no poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa

A imaginação, fonte principal da poesia, é o reino do impossível hic et nunc, não do impossível em si. A imaginação, pelo contrário, existe porque existe o impossível.
Armindo Trevisan, Reflexões sobre a poesia. 1993, p. 6.

Resumo

O presente artigo analisa o poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa em comparação com a estrutura da seqüência discursiva na tentativa de demonstrar que a estética da poesia não é prejudicada quando o leitor tenta entender o poema a partir de sua intencionalidade persuasiva. Esta possibilidade reside no fato de que tanto o discurso persuasivo quanto o poema podem se servir de recursos comuns como a metáfora e a metonímia.

Palavras-chave: poesia, persuasão, seqüência discursiva, metáfora, metonímia.


Abstract
This paper analyses Fernando Pessoa’s poem “Autopsicografia” making an analogy between the poem’s structure and the discoursive sequence structure in order to show that the poetry aesthetics is not damaged if the reader tries to understand the poem from its persuasive intentionality. This possibility lies on the fact that even the persuasive speech as the poem can use the same recourses like metaphor and metonymy.

Key words: poetry, persuasion, discoursive sequence, metaphor, metonymy.

1 Introdução

1.1 Pode a poesia ser argumentativa ou persuasiva?

A linguagem poética pode, como todas as outras, percorrer as planícies dos três grandes modos organizacionais do discurso, já que estes modos não são autônomos, mas dominantes (CITELLI, 2003, p. 37). Nossa proposta foi analisar o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, sem o receio de que esta análise pudesse desvirtuar o vigor caracteristicamente poético deste trabalho de Pessoa.

Vemos que entre os modos lúdico, polêmico e autoritário, o poema de Pessoa seria, predominantemente, um discurso lúdico, no qual o menor grau de persuasão não é em nada menos efetivo, pois a dinâmica estabelecida pelas figuras metafóricas e metonímicas favorece o “[...] jogo de interlocuções” (Ibidem, p.38) próprio do discurso lúdico.

Neste “jogo de interlocuções” percebemos, ainda, a ampliação do sentido na polissemia de algumas das palavras ao longo do poema, o que leva o leitor à “[...] poesia da descoberta; a aventura dos significados passa a ter o sabor do encontro de outros significados” (Ibidem).

O processo argumentativo será percebido nesta ampliação de horizonte de sentido na qual o eu lírico dialoga com o leitor sem as barreiras predispostas pela experiência do leitor, pois a estética da poesia é antes emoção e depois, razão. É a este processo persuasivo de convencimento, que passa antes pelo coração, que chamamos de persuasão poética. Antes de convencer o pensamento, a poesia quer convencer o sentimento:

A emoção caracteriza-se por sua natureza concreta: ou se sente amor, ou não se sente. Pode-se ter idéias nas quais não se acredita, mas não se pode ter emoções que não nos envolvam (TREVISAN, 1993, p. 21).

2 Desenvolvimento

2.1 A possibilidade de persuasão

Quando falamos em persuasão aceitamos que vigora a relação entre emissor e receptor, no eixo cujo objetivo é que um convença o outro de uma verdade. É o que afirma Citelli:

De certo modo, o ponto de vista do receptor é dirigido por um emissor que, mais ou menos oculto, e falando quase impessoalmente, constrói sob a sutil forma da negação uma afirmação cujo propósito é o de persuadir alguém acerca da verdade de outrem (CITELLI, 2003, p. 6).

A persuasão pode ser encontrada em diversas seqüências discursivas e cada uma delas irá se mostrar capaz de convencer no que lhe próprio. Mesmo a poesia persuade na arte das palavras e do no trabalho do sentido.

2.2 Os limites e meandros da persuasão poética

Citelli, 2003, diz “[...] que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo” (Ibidem). Nesta imagem podemos entender que a embalagem do produto, concordando que o autor na sua análise sobre a propaganda e o slogan, é anterior ao produto na hora do convencimento da compra e, no caso das palavras, do convencimento pelo sentido. O autor diz que poucas “organizações discursivas” não são persuasivas, “[...] talvez a arte, algumas manifestações literárias, jogos verbais, um ou outro texto marcado pelo entendimento lúdico” (Ibidem). Mas quando ele comenta o percurso da retórica no século XIX, o autor critica o uso deste recurso como “[...] verniz do estilo” (Ididem, p. 15) e cita os parnasianos brasileiros. Nesta crítica vemos que o abuso do recurso persuasivo impediria a poesia de realizar seu papel.

Após sua crítica ao “vazio da retórica”, Citelli, 2003, apresenta o moderno robustecimento desta arte das palavras na releitura dos conceitos aristotélicos presentes na obra “A arte retórica” com um comentário de Valéry “[...] sobre o papel de primeira importância que desempenham em poesia ‘os fenômenos retóricos’ ”(DUBOIS[1] apud CITELLI, 2003, p. 17).

Entendemos que a poesia, então, está neste limiar entre ser persuasiva ou não, dada sua capacidade de condensação do sentido e, por isso, des-veladora e veladora do sublime.

2.3 Recursos persuasivos destacados no poema

Encontramos no poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, a evidenciação de alguns recursos retóricos que o tornam persuasivo. Nosso pressuposto é que de o primeiro requisito à dinâmica da persuasão, a relação emissor-receptor, foi cumprido na oferta que o poeta faz trazendo ao mundo, em palavras poéticas, uma verdade sua. Mas para persuadir não basta falar ou escrever. Pessoa articula algumas figuras como a metáfora e a metonímia para convencer seu leitor. Mesmo que a poesia se apresente, neste nosso exemplo, de modo mais abreviado que um discurso argumentativo, a extensão não é barreira à intencionalidade persuasiva. As figuras retóricas, assim sendo, vão cumprir “[...] a função de redefinir um determinado campo de informação, criando efeitos novos e que sejam capazes de atrair a atenção do receptor” (CITELLI, 2003, pp. 19-20), independente dos limites espaciais do texto.

Antes da análise dos recursos persuasivos, vamos ao poema:


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração. (PESSOA, 2008)


Na metonímia “fingidor” o termo contíguo “finge dor” quase escapa à “[...] relação objetiva entre o plano de base e o plano simbólico” (CITELLI, 2003, p. 21), não fosse a reiteração fonético-semântica presente nos três versos posteriores. As metonímias “o poeta” e “um fingidor” cumprem seu papel de “[...] aproximação entre cada um de nós” (Ibidem), o que estabelece, já no primeiro verso, um vínculo claro e objetivo entre o eu lírico e o leitor.

A condensação deste verso vai se desdobrar nos demais versos e, de forma circular, irá atestar a declaração inicial do título. Como o poema está em terceira pessoa, a despeito do intimismo do título, cada leitor pode experimentar a leitura com uma fala sobre si mesmo ou a partir de si mesmo, como se fosse o autor do poema.

Esta aproximação metonímica do eu lírico com o eu leitor vai se consolidar na transferência metafórica do termo “fingidor” presente nos quatro versos da segunda estrofe. Assim o termo “fingidor” é ambíguo, pois se metonimicamente se refere ao poeta tomando o artista por sua arte, metaforicamente o termo pode ser transposto ao leitor como fingidor da dor que não tem.

O poema ainda ganha ares de texto argumentativo se considerarmos as três etapas comumente usadas na descrição de uma dissertação. Estas etapas aparecem bem definidas ao longo das três estrofes, em comparação direta com a estrutura de uma dissertação.

No poema temos a seqüência de proposição no título e na primeira estrofe. Temos uma explicação na segunda estrofe e a conclusão na terceira. A título de compreensão propomos a apresentação esquemática abaixo:

Estrutura argumentativa:

A - proposição: título e primeira estrofe do poema;
B - explicação: segunda estrofe;
C - convencimento: terceira estrofe;

Estrutura dissertativa:

A - introdução: título (declaração inicial) e primeira estrofe do poema;
B - desenvolvimento: segunda estrofe;
C - conclusão: terceira estrofe;


Para finalizar nosso raciocínio de que o poema se configura ao modo de uma seqüência discursiva persuasiva, fazemos notar como a terceira estrofe se mostra como uma conclusão das estrofes anteriores. Já no início temos uma conjunção aditiva e uma conjunção conclusiva “E assim”, que podem ser descritas como “indicadores de conclusão” (CAMPEDELLI; SOUZA, 2000, p. 385), ou “operadores argumentativos” (KOCH, 2002, pp. 102-108), recursos próprios em seqüências discursivas que usam o argumento por raciocínio lógico.

Em seguida encontramos duas metáforas “calhas de roda” e “comboio de corda”. Elas, de um modo mais próximo ao universo do leitor, cumprem o papel de conduzir a opinião de quem lê à conclusão de que o coração pré-domina e entretém a razão quando se trata de sentir ou fingir a dor, quando se trata de ser ou não ser poeta.


4. Considerações finais

Nossa proposta era estabelecer um paralelo entre a estrutura do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, com a estrutura de uma seqüência discursiva para mostrar como o poema poderia, sem fugir ao seu objetivo poético primeiro, ser entendido como uma ponte entre a vontade de expressão do eu lírico e a vontade de entendimento do eu leitor.

Vimos ser possível estreitar nosso horizonte de entendimento da mensagem poética, mesmo através de uma postura um tanto analítica, sem ferir a estética que é peculiar à poesia. A sugestiva aproximação que Pessoa faz entre aquele que escreve o poema e aquele que o lê, primeiro verso da primeira estrofe e quarto verso da segunda estrofe, é a ponte mesma entre o poeta e seu leitor.

A poesia, na possibilidade de ser entendida como seqüência discursiva, não está aí diante de nós para ser lida a partir da razão, mas a partir de uma razão entretida pelo coração.

5. Referências bibliográficas

CAMPEDELLI, Samira Yousseff.; SOUZA, Jésus Barbosa. Português: literatura, produção
de textos e gramática. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 15ª ed., São Paulo: Ática, 2003.

PESSOA, Fernando. Autopsicografia. Disponível em: www.releituras.com//fpessoa_psicografia.asp. Acesso em: 10 maio 2008.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993. Disponível
em: www.ufrgs.br/proin/versao_2/trevisan/index.html. Acesso em: 15 set. 2007.

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[1] DUBOIS, Jean et alii. Retórica geral. São Paulo : Cultrix, 1974, p. 15.

Nesta Terra de Quebra-em-nós-a-cruz

Todo esse fogo alastrado terá um efeito repetido   Deixará os ricos mais podres os pobres mais puídos   Pagaremos caro no mercado ganharão a...